São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 1997
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Dois abacaxis para a PUC

ELIO GASPARI

Caiu um abacaxi no colo da reitoria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Caiu perto de outro, velho, quase esquecido.
Há cerca de uma semana, um grupo de estudantes resolveu distribuir um jornal chamado "O Indivíduo". Num artigo, o estudante Pedro Sette Câmara, de 20 anos, ataca os movimentos negros, recomendando-lhes que vão reclamar da escravidão aos "descendentes dos negros escravizadores". Noutro, José Roberto de Barros diz que, se o homossexualismo "não é uma doença, é, no mínimo, algo muito peculiar evolutivamente".
Foram xingados, cuspidos e estapeados. A direção da universidade está cuidando do caso, e o reitor, padre Jesus Hertal, informou que os redatores dos artigos podem ser repreendidos e até mesmo suspensos.
Diz o reitor: "Não quero negar a legítima liberdade de expressão e o pluralismo de opiniões. Porém não posso concordar com o individualismo que ignora a solidariedade humana e o sentido cristão da fraternidade".
A frase não faz nexo. Ou o reitor quer negar a legítima liberdade de expressão dos redatores, ou acha que essa liberdade não é legítima e, portanto, pode ser negada. Ninguém quer que ele concorde com o que os estudantes escreveram. O que está em questão é o direito de os cidadãos dizerem o que bem entendem, sem sofrer constrangimento físico e ameaça da autoridade encarregada de manter a disciplina escolar.
Esse é o abacaxi fácil de descascar. Punem-se os autores dos artigos e vai todo mundo jantar. Os punidos saem como vítimas. Os insultados ficam desagravados e terá sido feita a vontade do reitor, para satisfação do que pode ser a maioria do corpo de alunos (coisa que ninguém mediu).
Resta o segundo abacaxi, velho e esquecido, porém capaz de complicar a festa, de lançar uma ponta de dúvida sobre a certeza dos reitores, a ira das maiorias e a maneira como a PUC administra as duas. A Pontifícia Universidade está interessada em solidariedade humana e em sentido cristão da fraternidade? Então, sirva-se do abacaxi velho.
Na noite de 25 de março de 1962, numa rua escura do centro da cidade do Rio (fora dos limites e do horário de funcionamento da escola), sete estudantes foram presos pela meganha do Departamento de Ordem Política e Social quando pichavam um muro com a seguinte inscrição: "Viva o 40º Aniversário do Partido Comunista Brasileiro". Dois deles eram alunos da PUC. Eram os irmãos Ailton e Alcir Henrique da Costa, filhos de um modesto motorista de Rocha Miranda.
Ailton estava no último ano de engenharia. Sua paixão eram os servomecanismos, coisa relacionada com aquilo que à época se chamava de "cérebro eletrônico". Seu curso não tinha similar na rede de ensino superior. Tinha sido aprovado num concurso da Petrobrás, esperava apenas as provas finais e, com o diploma, começaria sua carreira. Alcir estava no primeiro ano de sociologia.
A reitoria da PUC resolveu expulsá-los da universidade. A decisão foi ratificada por uma assembléia geral dos alunos, durante a qual os dois foram submetidos a um auto-de-fé. Um dos oradores encaminhou a votação a favor da decisão do reitor, sustentando que a pena era branda, pois lhes devia ser imposto também castigo físico. A defesa de Ailton, conduzida pelo estudante Rogério Belda, foi derrotada. (Muita gente boa que anda por aí votou pela expulsão da trinca. É de justiça lembrar que o estudante de engenharia Pedro Malan condenou a expulsão.) Os dois acabaram postos para fora pela vontade do reitor e da maioria da assembléia.
Ailton teve a juventude destruída. Viveu de aulas particulares. Empregou-se em serviço de economista e, com a ajuda sucessiva de três amigos (Luís Carlos Leme, Laffayete do Prado e Antonio Vilhena), firmou-se como um dos maiores engenheiros de transportes do Brasil. A nação lhe deve pareceres que permitiram economias de centenas de milhões de dólares durante a farra rodoviarista do "Milagre". A perda que a PUC lhe impôs marcou-o tão a fundo que, mesmo depois de se doutorar na França e de não precisar do diploma, tentou resgatar o passado. Foi batido por detalhes burocráticos e pelo desinteresse da escola de reconhecer a natureza do mal praticado. Morreu em 1987, sem o canudo.
Alcir conseguiu transferir-se para a Faculdade Nacional de Filosofia e é hoje o editor do jornal "Público", do sindicato dos funcionários públicos federais. Suas convicções políticas levaram-no duas vezes ao cárcere e por sete anos ao exílio. Como há 30 anos, chama a todos os interlocutores de "meu prezado". É um dos poucos que ainda usa essa expressão antiga, talvez seja o único que a usa porque efetivamente preza os outros. Nunca mais pôs os pés na PUC.
A PUC soube esquecer os dois jovens que expulsou em 1962. Nunca lhes deu uma palavra de solidariedade humana, uma linha de fraternidade cristã. Protegeu-se atrás da ignorância do individualismo dos poderosos.
Por ter preferido esquecer o que fez aos dois comunistas, a universidade mutilou sua própria memória. Agora chegou a conta. Ela corre o risco, num caso formalmente semelhante, de repetir a violência política, sempre em nome do bom-mocismo ideológico e da inimputabilidade que enfeita o que parece ser a vontade da maioria.
Os dois comunistas presos em 1962 deviam responder pelo que faziam, de acordo com as leis do país. A PUC e sua assembléia de alunos não tinham que se associar à polícia política.
Os estudantes que editam "O Indivíduo" devem responder pelo que escreveram de acordo com as leis do país, se é que as infringiram. A PUC não tem por que associar sua disciplina interna a um choque de opiniões.
Se alguém quiser melhorar a memória da escola, bem que poderia escrever o nome de Ailton e Alcir Henrique da Costa no portão da universidade. Daqui a 35 anos, quando uma nova geração entrar na PUC, haverá de lembrar que, por aquele mesmo portão, dois jovens foram postos para fora por motivos que, a cada 35 anos, cada geração se envergonha de lembrar.

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