São Paulo, sábado, 29 de novembro de 1997
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A bolsa e a vida

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nos assaltos de outros tempos o meliante propunha uma alternativa à vítima: "A bolsa ou a vida". A alternativa, em verdade, não era tão perigosa assim. A bolsa ia embora, mas a vida corria pouco risco, segundo comprovam as estatísticas. Hoje, a conjunção "ou" foi substituída pela aditiva "e". A frase do bicho-homem transformado em homem-bicho (os bichos que me perdoem) passou a ser: "A bolsa e a vida", porque ao menor gesto, até da angústia reprimida, lá se vai a vida, pela qual se perdeu o respeito.
A vida, no sentido absoluto em face da morte, é o manter-se respirando, com o cérebro a funcionar. Há, porém, os sentidos relativos da modernidade, em que, no acordar de cada dia, quando o ser humano pensa no que o espera nas próximas 24 horas, tende a admitir que "essa vida é uma droga!", quando é pessimista, ou que "a vida vai melhorar!", quando é otimista. Entre os dois extremos estão todos aqueles para quem o automatismo das tarefas diárias, com responsabilidades e encargos, passou a corresponder a um certo embrutecimento, impeditivo de avaliações mais profundas, com tendências metafísicas.
Fico na dúvida quanto ao modo de prosseguir, pois a expressão "a bolsa e a vida" passou a ter acepção nova, com efeitos das Bolsas (aqui com "B" maiúsculo, para facilitar a distinção gráfica) na vida do mundo. Já não se trata da vida individual, de um ser humano determinado, no momento de ser assaltado, mas da vida globalizada, em que seres vivos, animais e vegetais se desenvolvem e perecem sob influências distantes, em geral, incompreensíveis. Cai uma seguradora em Tóquio, a Bolsa japonesa sofre e o destino -sim, o destino- do planeta muda de perspectiva. Os pessimistas (de novo eles) prevêem coisas piores que o "crack" de 1929 e os otimistas insistem em que já estamos saindo do fundo do poço. Otimistas e pessimistas do mundo inteiro envolvem a vida no sentido mais coletivizante possível.
Talvez o leitor não saiba, mas, depois de muitos anos de absoluto domínio da economia, a Constituição de 1988 limitou a intervenção do Estado na atividade econômica.
O Estado, ou seja, a nação organizada, é agente normativo e regulador da atividade econômica, mas exerce funções de fiscalização, incentivo e planejamento que são determinantes apenas para o setor público, mas meramente indicativas para o setor privado.
Essa regra, inserida no artigo 174 da Carta Magna, está a dizer que a vida da cidadania brasileira ficou mais longe do dedo dos governantes. Ficou mesmo?
Para responder a pergunta não é preciso ir longe. Basta voltar às Bolsas. Elas, caindo em países distantes e, às vezes, misteriosos, estimulam a intervenção governamental nos atos de nossa vida, extrapolando os limites do artigo 174.
Cabe uma segunda pergunta: "Poderia ser diferente?". Devemos discutir a qualidade das medidas adotadas, para determinar se são as melhores, mais consentâneas com a reação do Brasil. Não devemos, porém, negar que uma longa e urgente série de providências era necessária.
Retorno ao começo: hoje as bolsas e a vida estão -em acepção diferente, mas perigosa- propondo alternativas para nós todos.
Não estamos diante do meliante armado, mas de uma trama complexa, em que delinquentes perfumados e bem-falantes, incapazes de matar uma mosca, espalham o mal pelo mundo, sem que possamos saber de onde ou como desferem o golpe. Golpe tão sério que, para o enfrentar, torna-se necessário repensar os limites e a qualidade da intervenção governamental na vida do país.

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