São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Um mundo em pedaços

MICHAEL LIND
DO "THE NYT BOOK REVIEW"

O mais famoso mapa norte-americano do século 20 pode ser o mapa do mundo visto desde Manhattan, de autoria de Saul Steinberg. Nova Jersey assoma grande; o resto dos EUA continental aparece achatado, com a Ásia aparecendo por cima da Califórnia. Segundo Martin W. Lewis e Karen E. Wigen, professores de geografia e história, respectivamente, na Universidade Duke, quase todos os mapas-múndi geográficos conceituais são distorcidos pela espécie de bairrismo satirizado por Steinberg. O título de seu livro, "The Myth of Continents - A Critique of Metageography" (O Mito dos Continentes - Uma Crítica da Metageografia) é algo enganoso. Ao repassarem a história da arte do geógrafo, dos dias de Aristóteles aos de hoje, os autores utilizam a definição convencional de "continente" como apenas um dos muitos exemplos de como os mapas que traçamos do mundo mapeiam nossos próprios "pré-conceitos".
Lewis e Wigen argumentam que os europeus exageraram sua própria importância, fazendo de sua península um continente independente, ao mesmo tempo em que reduziram a China e a Índia a meros subcontinentes. "Em termos de diversidade física, cultural e histórica, China e Índia são comparáveis a toda a massa terrestre européia, não a um único país europeu", escrevem.
Os europeus e norte-americanos frequentemente dividiram, também, o mundo em Ocidente e Oriente. Não apenas as definições, mas também as características atribuídas ao Oriente ou ao Leste mudaram drasticamente no decorrer do tempo. Lewis e Wigen observam que "o que Voltaire e seus contemporâneos identificaram na Ásia oriental foram precisamente os valores que hoje costumamos associar ao Ocidente: racionalismo, moderação e 'governo místico, não dogmático'.
Contrastando com isso, aqueles que tecem críticas à civilização ocidental em nossos dias normalmente somaram ao desprezo expresso pelos filósofos franceses à violência e cobiça ocidentais o desabono de precisamente esses valores, de modo que a racionalismo se torna não uma virtude oriental, mas um vício ocidental". Agora que Cingapura simboliza o racionalismo tecnocrático e que o Islã é identificado com a ética puritana, enquanto os EUA (a parte mais ocidental do Ocidente) são vistos por boa parte da humanidade como o país marcado pelo fundamentalismo cristão, seitas New Age, rock'n'roll, drogas e liberdade sexual desenfreada, a atitude dos iluministas pode se revestir de nova atualidade.
Embora sejam implacáveis ao expor os preconceitos euro-americanos, os autores deixam claro que o etnocentrismo não é exclusividade euro-americana. Todos sabem que a China sempre se considerou o Império do Meio, mas quantas pessoas sabem que um nacionalista coreano considerava a península coreana "o núcleo de uma das três grandes regiões culturais do mundo (sendo as outras duas a China e o 'reino indo-europeu')"? Segundo Lewis e Wigen, "ainda no início do período moderno, os mapas-múndi indianos mostravam o sudeste asiático formando o grosso da massa terrestre do planeta. Um cartógrafo indiano chegou a retratar a Europa em alguns círculos periféricos rotulados 'Inglaterra, França... e outras ilhas cujos habitantes usam chapéus'±".
Durante a Guerra Fria, as pessoas se familiarizaram com dois mapas conceituais do mundo. Um deles, baseado nos alinhamentos geopolíticos, dividia a Terra, como a Gália de César, entre os primeiro, segundo e terceiro mundos. O outro, preferido pela esquerda, traçava uma divisão entre Norte e Sul e exigia do observador, nas palavras de Lewis e Wigen, "que usasse bastante de sua imaginação". Os autores consideram, mas rejeitam, a idéia pós-modernista, muito em voga, segundo a qual todas as tentativas de mapeamento e rotulamento são inúteis. Para eles, é indispensável reconhecer que a humanidade normalmente tem sido dividida em civilizações regionais. Essa convicção os leva a encarar com respeito os esforços de Arnold Toynbee e Samuel Huntington de mapear as fronteiras das civilizações mundiais, embora discordem de seus resultados.
Em sua própria tentativa de diagramar culturas distintas, Lewis e Wigen preferem à idéia dos continentes a de "regiões mundiais". A aplicação que fazem dessa abordagem à história mundial é, de modo geral, convincente. Em sua visão, a chamada "Europa" pode ser melhor compreendida como "Eurásia ocidental", e a Eurásia, por sua vez, é apenas um componente do "supercontinente Afro-Eurásia". Durante boa parte do último milênio e meio, uma faixa desse supercontinente que é pontilhada de cidades, o "ecúmeno afro-asiático" (a faixa de clima temperado situada entre o Saara e as estepes), se dividiu entre três civilizações amplamente definidas: a asiática oriental, a índica (hindu) e a das "terras de tradição abraâmica" (ou seja, judaísmo, cristianismo e islamismo).
Para os norte-americanos, acostumados à idéia da tradição judaico-cristã, pode ser quase impossível pensar nos três Povos das Escrituras como pertencentes a "uma única megareligião judaico-cristã-islâmica, rigidamente monoteísta" (para citar uma frase cunhada por Jim Mason, teórico ambiental citado por Lewis e Wigen). Para hindus e confucianos, a mesma idéia pode parecer um simples exemplo de bom senso.
Tendo criticado muitos outros autores por seus mapas conceituais do mundo moderno, os autores merecem elogios pela coragem de apresentar seu próprio "esquema refinado das regiões mundiais". Seu conceito de região como indicativo de religião e cultura funciona bastante bem para as regiões do Velho Mundo -ou melhor, para as regiões afro-eurasianas como sudeste asiático e Ásia oriental. Mas é menos convincente quando dividem o hemisfério ocidental em três regiões, de acordo com princípios diferentes e incompatíveis.
A América do Norte e Iberoamérica são definidas por língua e herança colonial européia, enquanto a "América africana", que inclui as ilhas caribenhas e o Brasil costeiro (mas não o sul dos EUA), é definida por raça. Se os critérios são língua e cultura, o Reino Unido não deveria ser incluído com a América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, e Portugal e Espanha com a Iberoamérica? No mapa oferecido por Lewis e Wigen, presume-se que Reino Unido e Espanha têm mais em comum entre si -e também com a Escandinávia e a Itália- do que com suas ex-colônias.
Mas essas são pendengas menores. Discutir esses assuntos não é apenas importante, mas também divertido. O simples fato de que seu trabalho estimula esse tipo de questionamento já constitui um tributo aos autores. Com "The Myth of Continents", Lewis e Wigen escreveram um relato divertido e informativo da maneira como nossos mapas nos mostram o mundo que queremos ver.

Tradução de Clara Allain

A OBRA: "The Myth of Continents - A Critique of Metageography", de Martin W. Lewis e Karen E. Wigen. Berkeley/University of California Press, 344 págs., US$ 55, encadernado em tecido, ou US$ 19,95, em papel.
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