São Paulo, quinta-feira, 4 de dezembro de 1997
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Geografia no Primeiro Mundo

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Meus amigos, vocês vão me desculpar, mas este economista está saturado de crise, juros, câmbio e pacote fiscal. Hoje vou tratar de outro assunto.
Tomo como gancho a "gafe" do presidente da França, Jacques Chirac, que, ao recepcionar Fernando Henrique Cardoso na Guiana Francesa, na semana passada, declarou-se feliz de reencontrar "o presidente do México". Episódio mortificante para FHC, que parece ter na França a sua pátria do coração e que é considerado, pelo menos no Brasil, sociólogo de renome internacional.
A "gafe" dá margem a diversas considerações e especulações. É curioso, por exemplo, que tenha sido não o governo francês, mas o brasileiro a oferecer "explicações" para o episódio. Segundo o porta-voz de FHC, o lapso de Chirac decorreu do fato de que os dois presidentes conversavam, momentos antes, sobre o México....
Brasileiros desconfiados não acreditaram em "lapso". Consideraram que houve ali uma alusão maldosa às semelhanças entre o Plano Real e o programa econômico do México, que entrou em colapso estrepitoso no final 1994. (Já antevejo a cena: a partir de agora, toda vez que FHC aparecer em público, dezenas de opositores vão comparecer portando imensos sombreiros). O mais provável, entretanto, é que a "gafe" seja reveladora do pouco interesse e informação que têm os desenvolvidos sobre a periferia do mundo.
Vejam vocês o absurdo da situação. Segundo setores da imprensa brasileira, esse mesmo Chirac estava decidido a promover o Brasil a membro do Grupo dos 7, constituído pelos sete principais países desenvolvidos. Em maio do ano passado, por ocasião da visita de FHC à França, um dos principais jornais do Brasil abriu a seguinte manchete em letras garrafais: "França quer admissão do Brasil no G-7". O subtítulo era: "Projeto de Chirac é concluir o ingresso do país no grupo dos mais ricos até o final do século". A reportagem relatava que "a proposta de admissão era 'um gesto' de Chirac de reconhecimento da política brasileira de integração à nova ordem econômica mundial".
Fala-se muito em "sociedade global de informação", suposto resultado dos extraordinários progressos nos campos da telecomunicação e da informática e do triunfo do regime democrático na maior parte do mundo. Mas a impressão que se tem não é bem essa. Em geral, prevalece o ruído sobre a informação.
Não foi a primeira vez -longe disso- que a imprensa brasileira propagou fantasias sobre a posição internacional do país ou que governantes do Primeiro Mundo fizeram confusões constrangedoras entre o Brasil e outros países latino-americanos. Quem não recorda do presidente dos EUA, Ronald Reagan, em visita ao Brasil, agradecendo a hospitalidade do "povo boliviano"? Um detalhe menos lembrado é que, ao ser alertado por um assessor, Reagan saiu-se com a seguinte: "Sorry, Bolívia is where I'm going next" ("Desculpem, a Bolívia é para onde estou indo agora"). E vejam vocês: ele estava indo para a Colômbia! (Não me sai da cabeça a imagem de FHC perseguido por uma multidão de sombreiros!)
Às vezes, essas trapalhadas têm consequências mais sérias. Quando Dilson Funaro assumiu o Ministério da Fazenda, no final de 1985, havia um impasse com o FMI. Estávamos em plena crise da dívida externa. O governo Sarney não queria fechar acordo com o Fundo, que impunha condições muito rígidas e funcionava, em geral, como uma espécie de departamento de cobrança dos bancos credores. Por outro lado, Washington e os bancos privados exigiam acordo com o FMI como condição prévia para o reescalonamento da dívida brasileira.
Naquele momento, o Brasil ainda não assumira publicamente a decisão de não negociar um acordo com o fundo. Recém-empossado, Funaro testava a temperatura da água.
Aí aconteceu a confusão. Numa reunião, em Washington, com o secretário do Tesouro dos EUA, James Baker III, Funaro expôs a intenção de negociar a dívida sem acordo com o fundo. Para a surpresa dos brasileiros presentes, Baker disse que, no caso do Brasil, não havia necessidade desse acordo.
Funaro não perdeu tempo. Declarou à imprensa que o Brasil não iria ao FMI e que o governo dos EUA estava de acordo com essa decisão.
Foi um Deus nos acuda. O governo americano protestou indignado, alegando que não havia acordo nesse ponto. Valendo-se do fato de que um diplomata brasileiro tomara notas detalhadas do diálogo, Funaro enviou a transcrição a Baker.
Então, os americanos resolveram esclarecer o mal-entendido. Baker havia confundido o Brasil com a Colômbia! Naquela época, a Colômbia era, dentre os principais países latino-americanos, o único que não estava reescalonando a sua dívida externa. No entendimento de Washington, não precisava necessariamente recorrer ao FMI.
Pois bem. Um bater de asas de uma borboleta nas Filipinas desencadeou um tufão no Caribe. Com esse incidente começou a se cristalizar um impasse que levaria o Brasil à moratória no início de 1987. Tendo-se comprometido publicamente em não fechar acordo com o fundo, o governo brasileiro deparou-se com grande má vontade dos credores externos na negociação da dívida. As negociações avançaram muito pouco.
Veio o Plano Cruzado. A economia cresceu e o superávit da balança comercial minguou. Como o Brasil continuava fazendo pesados pagamentos de juros aos credores internacionais, as reservas internacionais começaram a diminuir rapidamente. Funaro acabou decidindo suspender a remessa de juros aos bancos.
Moral da história: é duro ser periferia. Não adianta imaginar que países como o Brasil terão atenção especial se forem bem-comportados e seguirem à risca as orientações do G-7. Vamos cuidar mais dos nossos interesses e deixar de lado as fantasias de reconhecimento internacional tão ao gosto das elites tupiniquins.

Paulo Nogueira Bastista Jr., 42, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net

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