São Paulo, quinta-feira, 4 de dezembro de 1997
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No tempo dos militares

OTAVIO FRIAS FILHO

O Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas acaba de publicar, em livro, a série de depoimentos que o presidente Ernesto Geisel concedeu aos pesquisadores Maria Celina D'Araujo e Celso Castro entre 93 e 96. O depoente morreu depois de completar uma revisão meticulosa, como era do seu estilo, no documento.
Geisel responde em tom frio, quase burocrático, sempre preocupado em fixar a sua versão para a quantidade impressionante de episódios decisivos que viveu, desde a Revolução de 1930 até o período em que ocupou a Presidência (1974-1979), obviamente o núcleo do livro. Ele foi o ditador que começou a desmontar a ditadura.
Elio Gaspari, estudioso do período, já escreveu que esse aparente paradoxo se explica: Geisel não tinha compromisso com a democracia, regime que aliás ele desprezava quase explicitamente, mas sim com a ordem na instituição militar e no Estado em geral, ordem que o descalabro repressivo do governo Médici subvertia.
No depoimento do CPDOC, fica mais uma vez patente como para Geisel (e toda a sua geração, a dos "tenentes") o Estado tinha o papel de disciplinar, sobretudo nos países atrasados, a turbulência "egoísta" e "imatura" das classes sociais, canalizando suas energias indolentes ou dispersivas para induzir o desenvolvimento.
Daí essa estranha fórmula de um reacionarismo revolucionário, marca registrada das inúmeras vezes em que o Exército ou uma facção dele se julgou no direito -conforme o ponto de vista, no dever- de substituir-se à sociedade para "salvá-la". O depoimento mostra a que ponto chegou a militarização da política, fruto da politização do Exército.
Essa militarização se desdobra em dois aspectos, ambos danosos. A política se torna um fio desencapado, reduzida ao cerne das suas relações de força. Há golpes dentro do golpe, subgolpes, até um golpe preventivo houve (Lott, 1955). O governo Geisel, agora segundo o próprio, foi essencialmente uma luta entre duas facções militares.
Ao mesmo tempo, a vida pública se reduz a uma dimensão de caserna, aos meandros de um convívio gremial, repleto de fofocas e ressentimentos, mas onde a camaradagem afinal impera, de modo que uma alta nomeação política pode depender da confiança num antigo companheiro de guarnição ou carteado. O Estado se torna quartel.
Talvez o principal mérito do livro seja, mais do que avivar essa memória, organizá-la, torná-la cristalina e irrefutável, resultado obtido graças à clareza de instrutor alemão do depoente. É chocante a distância mental que nos separa de um período ainda tão recente, o que dá a medida do enorme progresso institucional dos últimos 20 anos.
Bem ou mal, Geisel é um dos avôs (o outro seria Ulysses) desta democracia, a melhor e mais ampla que tivemos: ninguém lhe tira esse apanágio. Mas que não se espere encontrar um Geisel democrata ou "humano" no livro; austero, sombrio, orgulhoso, ele é o mesmo general que um dia teve poderes de deus asteca sobre os brasileiros.

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