São Paulo, quinta-feira, 4 de dezembro de 1997
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A paixão pela ciência

ROGER COZIOL

Recebi pela Internet uma mensagem de Alan Hale, um dos descobridores do cometa Hale-Bopp. Nela, o dr. Hale denunciava o fato de que era um astrônomo profissional desempregado: "Que ironia. Fiz uma descoberta importante, mas não encontro emprego". Infelizmente, isso é muito comum na ciência.
Considere-se meu caso. Em 1994, formei-me em física na Universidade de Montreal, no Canadá. Consegui um primeiro posto de pós-doutorado em astronomia no Brasil, com duração de dois anos. Neste ano, obtive um outro pós-doutorado no Laboratório Nacional de Astrofísica, em Itajubá (MG). Não conheço o futuro.
Também fiz descobertas importantes. Participei da descoberta de um grupo raro de sete galáxias ativas e, depois, da do quasar PDS456, o mais luminoso do universo próximo (não é mais costume dar a corpos celestes o sobrenome dos descobridores, exceto quanto aos cometas). Logicamente, isso deveria ajudar minha carreira.
Mas conheço outro caso no Canadá, de um astrônomo mundialmente conhecido, que recebeu muitos prêmios e não conseguiu encontrar trabalho. Claro, tem um bom emprego na indústria e ganha mais dinheiro do que na astronomia. No entanto, sei que é muito infeliz por estar fora de sua área.
Fazer descobertas em ciência é esperado. Trabalha-se na fronteira do conhecimento. A excitação da pesquisa é parte da aventura. Isso explica por que cientistas gostam tanto do trabalho. É preciso gostar: fazer ciência não é fácil.
No Canadá, a regra exige que os astrônomos façam pós-doutorado no exterior após se formarem. Na verdade, é uma maneira de dizer que não há emprego pra você em seu país. Assim, raros são os jovens doutores que continuam trabalhando em sua área.
Conseguir um pós-doutorado é difícil. No mundo inteiro, o mercado de trabalho está saturado. Geralmente, pós-doutorados são contratos de curto prazo, de um a dois anos, com salários baixos. E você vai de pós-doutorado em pós-doutorado até encontrar um emprego estável ou simplesmente desistir.
A ciência é comparável ao esporte. Você deve ser o melhor no mundo. Mas apoios e fama são bem menores. E a competição é feroz. Em astronomia, os grandes competidores são os americanos. Dominaram a língua da ciência, têm mais dinheiro e monopolizam os jornais e os telescópios. Formam também o "establishment" científico.
Antes de ser publicado, um artigo deve passar por uma arbitragem. O árbitro é, habitualmente, um craque da ciência. Infelizmente, muitas vezes, também compete com os autores. Já vi artigos recusados para que se permitisse a publicação de um concorrente.
No mundo há poucos telescópios de grande porte disponíveis. Portanto, pedidos de tempo devem passar por arbitragem. Mas, quando você não faz parte da "boa" turma, sempre há "boas" razões para a recusa de seus projetos.
Em ciência, suas idéias não devem ser inovadoras, porque vão ser, em princípio, rejeitadas. Na área, o pior é lutar contra a ignorância, a má vontade ou as brigas pelo poder. Afinal, seu argumento é mais forte do que o de seu adversário somente quando ele morre: "Morituri te salutant" ("os que vão morrer te saúdam").
A ciência é feita por seres humanos. Portanto, é lógico encontrar nela qualidades e defeitos dos seres humanos. As coisas se complicam quando você coloca limites e pressões sobre eles.
Vivemos um tempo de desilusão com a ciência. Os milagres do início da era industrial se tornaram monstros gerenciadores de mortes, poluição e desemprego. A ciência é complicada, e as pessoas não entendem o que acontece. Então, os governos reduzem orçamentos, diante da indiferença geral. É fácil quando isso afeta a ciência "pura", cujas aplicações práticas não são óbvias.
Mas essa fase é passageira. Se o ser humano tem chances de continuar a viver neste planeta, isso se dará graças à ciência. Aquilo de que nós mais precisamos é o conhecimento de quem somos. Isso é o que oferece a astronomia.
Quando se soube que a Terra é redonda, descobriu-se a América. Quando se soube que é um planeta como milhares de outros, abriu-se o universo para nós. Saber que há vida em toda a nossa galáxia implica não sermos mais exceção. Mas, no espaço, as distâncias são tão grandes que só podemos nos comunicar com nosso irmão na Terra.
Por que fazer astronomia? Provavelmente pela mesma razão de quem pinta, dança ou faz música: por amor. Conheço só uma maneira de amar; portanto, só tenho uma maneira de viver.

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