São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O guia espiritual da paranóia norte-americana

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

O indício parece óbvio, mas nem por isso confiável. O Mao a quem o escritor Don DeLillo se refere, em seu mais novo trabalho editado no Brasil, não é o cidadão da história chinesa -ou ao menos não só.
DeLillo em "Mao 2", seu décimo livro, publicado nos EUA em 1991 (75 mil cópias vendidas em primeira edição), faz da submissão convertida em religiosidade, e da força transformada em fanatismo, o tema para um romance épico sobre a vida e o descontrole nos Estados Unidos que, por força das circunstâncias do mundo, representa hoje quase todo o Ocidente.
Em "Os Nomes" (Companhia das Letras), DeLillo avisava que ser um norte-americano significa ocupar o lugar de um alvo preferencial. Agora, lança seus personagens no pleno território do perigo.
Conta-se então a história de um escritor como DeLillo. E, da mesma maneira que seu criador, Bill Gray também não suporta a convivência com a mídia e prefere se ausentar das celebrações em nome da literatura, das artes e da cultura.
Já foi dito que DeLillo está na escala sete de fuga da mídia. Thomas Pynchon consegue um número oito e J.D. Salinger, é claro, tem um dez, a pontuação máxima.
Gray, por isso, é montado à imagem e semelhança do autor de "O Apanhador no Campo de Centeio".
DeLillo conta que no verão de 1988 viu uma foto de Salinger estampada na capa do jornal The New York Post, a primeira publicada desde 1955. A imagem mostrava um homem desesperado. DeLillo pensou que a foto se igualava a um tiro, e sua publicação a uma sentença de morte.
"Mao 2" traz (não por coincidência) a perseguição de Gray por uma fotógrafa que se especializou em retratar escritores. Mas esse é apenas um entre vários jogos de caça e caçador. O escritor, durante a trama, acaba se envolvendo com um grupo terrorista.
Na aventura, é acompanhado por seu assistente, Scott, e sua mulher (que no decorrer da história terminará se apaixonando pelo recluso Bill).
Seguindo um esquema típico de DeLillo, em "Mao 2" os personagens falam sem parar, como se a língua e suas teorias sobre os casos, objetos e lugares estivessem além deles, e seus discursos fossem resultado da ação de uma força desconhecida em seus lábios.
Falam de acontecimentos em terras distantes, das seitas espalhadas pelos EUA (a Igreja da Unificação), das drogas, da televisão, das embalagens em supermercado e do terrorismo internacional.
O terror organizado, para DeLillo, se assemelha, de certa maneira, ao trabalho de um romancista.
Há, em seu livro, a crença de que nas sociedades democráticas o terrorismo é repleto de significados por ser uma ação transformadora de consciência. O papel de agente transformador, antes, acredita, cabia ao escritor.
Hoje, pensa DeLillo, isso lhe foi roubado porque a própria liberdade resultou em banalização de imagens, conceitos e idéias. A literatura e seu produtor vivem atrelados não mais a um público interessado. Sai a audiência. Entram os consumidores.
Paul Auster
A chegada de "Mao 2", e suas idéias, resultaram em um choque para seus contemporâneos.
Depois de ler o livro, o romancista Paul Auster escreveu "Leviatã" (ed. Bestseller), que, segundo seu próprio autor, é uma continuação -ou resposta- ao livro escrito por DeLillo.
Auster cria um personagem que abandona a literatura para cometer atos de terror: colocar bombas em réplicas da Estátua da Liberdade. Nas páginas iniciais desse romance, uma dedicatória a Don DeLillo.
Para a crítica de seu país, DeLillo se incumbe de dar voz às paranóias da nação. Um autor empenhado em revelar que tipo de civilização se formou a partir da explosão de uma bomba atômica e da implantação das cadeias de fast-food em escala mundial.
Em cada um de seus livros -e "Mao 2" é um fino exemplo, ao lado de "Ruído Branco"- tudo o que quase não damos atenção (o combustível, o forno microondas, o ferro à vapor) em nosso cotidiano se torna atuante e invariavelmente repleto de significados.
Tudo nos avisa, por fim, em que tipo de futuro poderemos mergulhar.

Livro: Mao 2
Autor: Don DeLillo
Lançamento: Rocco
Quanto: preço não definido (488 págs.)

Texto Anterior: MAO 2
Próximo Texto: DELILLO POR DELILLO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.