São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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Pompéia, a cidade-fantasma, sepultada viva

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Foi pouco depois do meio-dia: não devia haver folhinha na época, mas, se houvesse, em alguma loja estaria marcada a data: 24 de agosto de 79. Estavam longe os tempos das lutas entre etruscos, fenícios, gregos e romanos pela posse da cidade. O mundo vivia a "pax" de Augusto, as cidades não fechavam suas portas. Pouco antes, nascera numa província de Roma um judeu que ainda não incomodava a potência e o prazer do império. Pompéia era isso mesmo: a cidade destinada ao prazer dos romanos da alta classe média.
Bela adormecida, Pompéia repousou 15 séculos sem que ninguém soubesse o seu local exato. Até que, em 1594, o arquiteto Domenico Fontana resolveu construir um aqueduto que levasse água do rio Sarno até Torre Annunziata, um subúrbio napolitano. Os operários cavavam a terra cor de chumbo quando um deles encontrou um buraco, depois ruínas com inscrições.
Pompéia era uma cidade de grafites, alguns políticos, outros comerciais, a maioria pornográficos. Mas ninguém teve certeza de que se tratava da antiga Colônia Cornelia Veneria e a cidade continuou adormecida até que, em 1748, o rei Carlos de Bourbon, desejando recuperar algumas obras de arte que já se encontravam semidescobertas, iniciou o trabalho das escavações.
A partir de 1860, Giuseppe Fiorelli começou a pesquisa arqueológica. Pouco a pouco, Pompéia foi despindo sua túnica de cinza para surgir aos olhos atônitos do homem moderno como um fantasma que deixa a sepultura, redivivo e imortal.
É muito mais do que a múmia de uma cidade. Morta, ela continua viva, apenas abandonada por seus habitantes. O anfiteatro e a arena ainda parecem prontos para o espetáculo. À saída do teatro, uma espécie de lanchonete tem os balcões estrategicamente situados para vender refrescos e cachorros-quentes. E se, depois de distrair o espírito, alguém desejasse distrair a carne, não precisava perguntar pelo bordel: era só seguir a direção apontada pelos falos de pedra e ia dar lá. Bastava pegar a Via degli Augustali e dobrar à direita no Vincolo del Lupanare, onde se situa o próprio.
É uma casa relativamente pequena, com quartos embaixo e em cima. Pompéia recebia forasteiros que atravessavam os cinco mares que banham a Península Itálica para se deliciarem na Riviera daquele tempo, a bela Partenope, que mais tarde se transformaria na divertida Nápoles de hoje. Evitando equívocos, cada prostituta colocava em cima de sua cama um interessante quadrinho que ilustrava a sua especialidade sexual. A imagem já valia 10 mil palavras e aquilo funcionava como um símbolo universal, pois as línguas variavam, mas o desejo era o mesmo.
Rica na arquitetura, nos deuses e nas artes, Pompéia era pobre em imaginação: apenas seis modalidades de sexo, quando o Kama Sutra oriental reuniu 48 maneiras de se praticar o pecado da carne. (Bem verdade que o Ocidente lavou a égua mais tarde, no Concílio de Trento, quando os padres conciliares conseguiram catalogar a extraordinária marca de 369 variações).
As casas formam um capítulo à parte na vida de Pompéia. As mais bonitas têm o "pluviarium" à entrada e o "lararium" onde se cultuava o nume tutelar e donde se originou a idéia física do lar. A mais bela de todas -segundo os entendidos- é a casa do Fauno Dançante, mas outras há de igual garbo e idêntica formosura. A Casa de Menandro, onde foi encontrado um tesouro em prata. A Casa dei Vettii, com seus afrescos vermelhos, negros e dourados. A Casa de Cornélio Rufo e a Vila dos Mistérios são também conjuntos notáveis.
Cada visitante que chega a Pompéia pode escolher a sua casa. Para aqueles que se formaram (ou se desinformaram) no culto aos clássicos, a mais emocionante talvez seja a Casa do Poeta Trágico. Não pela casa em si, mas pela inscrição que ali foi colocada: "Cave canem". Cuidado com o cão. Há 2.000 anos serve de exemplo para a regência do verbo. Poderia ser, também, "cave hominem" -cuidado com o homem.
Cada peregrino que deixa Pompéia, ao sacudir de suas sandálias o pó de 20 séculos, leva dentro de si alguma coisa de novo com gosto de antigo. Ambos ficam por conta das ruínas. Tal como as estrelas do poeta, é preciso amá-las para entendê-las.

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