São Paulo, sábado, 6 de dezembro de 1997
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Como ganhar a primeira página

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Jornal de ontem é para embrulhar peixe -a máxima tem servido, ao longo de várias gerações, como refrão dos cínicos para forçar o caráter efêmero do jornalismo. Desculpa para erros, justificativa para ligeirezas e calhordices, descaso com o valor documental do ofício de acompanhar fatos.
Jornal de ontem é a base do conhecimento de hoje. Venho de uma experiência, junto com um grupo de profissionais, em que o jornal de ontem significou justamente o contrário do que pretende a escola dos peixeiros: desembrulhou a fisionomia de grande parte deste século -"100 Páginas que Fizeram História".
A melhor lição de jornalismo pode não estar na última edição do manual, mas numa primeira página criteriosa e informativa que, 50 anos depois, consegue ser jornal de hoje. A mais sábia lição para políticos e militantes certamente não será encontrada em compêndios sobre ideologias, mas num jornal antigo em que as jogadas "geniais" de então, hoje mirradas, parecem fósseis descarnados.
As edições dos jornais da última quarta-feira, quando lidas pela próxima geração de estudiosos, trará conclusões surpreendentes: a ditadura não acabou em 1985, mas alongou-se até a virada do século. Claro, todos sabem que, institucionalmente, o regime é democrático, que o calendário eleitoral prossegue sem tropeços, que o sistema de poderes independentes funciona razoavelmente e as liberdades estão garantidas.
Ficou patente, porém, que certos setores da sociedade, justamente aqueles que se presumem na vanguarda, ainda estão operando com mentalidade e métodos dos anos de chumbo. Pior, trabalhando ativamente para o seu retorno.
A invasão do gabinete do ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, pela tropa de choque do MST, terça-feira, em Brasília, foi um motim antidemocrático, provocação no melhor estilo "agit-prop". Stalinismo sem escrúpulos aliado à lógica demente do trotskismo policialesco.
Não havia impasse, as negociações e a pauta de encontros entre o governo e os reivindicantes vinham sendo cumpridas quando, de repente, dá-se a tentativa de sequestrar o principal interlocutor, ministro de Estado, num prédio público, inviolável, garantido pela Constituição.
A explicação para o súbito ensandecimento do MST não se encontra no Brasil, mas do outro lado do Atlântico, Hemisfério Norte, mais precisamente Londres: naquele exato momento, o presidente da República era hóspede oficial do Reino Unido. A jogada de agitação e propaganda não visava apressar algum assentamento ou liberação de créditos para assentados.
O MST queria apenas virar notícia em Londres, a qualquer preço, de preferência com vítimas. Como o apostólico Sebastião Salgado já está envolvido em outra missão neste planeta assolado por injustiças, o estrategista da operação pretendia que fotógrafos menos famosos registrassem o incidente.
Como hoje uma imagem vale por mil palavras -assim quer o mercado-, uma telefoto de pancadaria em Brasília, quando o presidente do Brasil é hóspede em Buckingham, sobretudo envolvendo os mitológicos militantes, acabaria por suplantar qualquer discurso, homenagem e acordo, por mais importante que fosse.
A ameaça de virar a mesa para que alguém se antecipe e ponha tudo de pernas para o ar é técnica pré-histórica, visigótica, de bárbaros que não acreditam em democracia e que já nos levou a longos retrocessos. Na preparação das "100 Páginas" fomos remetidos a equívocos semelhantes de minorias ditas de vanguarda e pelos quais a maioria inocente, na retaguarda, pagou pesado tributo.
Então, surge a inevitável pergunta: onde estava o policiamento encarregado de garantir o funcionamento das instituições nacionais e desestimular as incursões piratas? Acontece que, no emaranhado dos nossos estatutos legais, ainda insuficientemente examinados, a proteção física da sede do governo federal cabe à polícia militar de um território cujo governador é eleito e, por conseguinte, tem interesses político-eleitorais particulares que não coincidem com os desígnios permanentes do Estado.
O governador do Distrito Federal é Cristóvão Buarque, intelectual brilhante, competente administrador, homem de bem que, no entanto, é candidato a candidato à presidência. Como representa o setor moderado do PT, também chamado de "gente como a gente", não poderia empreender uma ação enérgica contra os radicais sob pena de perder espaço dentro da coligação de oposição.
As alegações de que a polícia local não tinha como se antecipar à baderna são inconsistentes e só depõem contra a competência e/ou seriedade das autoridades envolvidas: uma caravana com meia dúzia de ônibus despejando uma pequena multidão na Esplanada dos Ministérios só passa despercebida para quem não queira enxergá-la.
Quando o general Golbery do Couto e Silva estava na Casa Civil do presidente Figueiredo tinha um programa político: fragmentar a formidável frente de oposição, o PMDB (ex-MDB), para prosseguir no seu cronograma de distensão. Conseguiu sem cassações ou atos institucionais ao seduzir duas lideranças oposicionistas para criar seus próprios partidos, PT e PDT.
O maquiavelismo de Golbery, "gênio da raça" (como o chamou Glauber Rocha), parece que deitou raízes nesse que foi concebido para ser o partido da ética. Acontece que, hoje, o projeto nacional brasileiro, independentemente de quem esteja no poder, está visceralmente comprometido com a democracia e o respeito ao Estado de Direito.
Se a alegre rapaziada do MST, nostálgica da ditadura, quer exposição a qualquer preço, deve estudar a cartilha da ex-companheira, Débora Rodrigues que, na mesma tarde, conseguiu derrubar o sistema telefônico em São Paulo com o seu "Fantasia", recém-estreado na TV. Tantos foram as chamadas que a rede entrou em pane. Dia seguinte, a nova comunicadora faturava as melhores primeiras páginas.
Jornal de ontem é inestimável. Convém folheá-lo -para reviver.

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