São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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A aula inaugural de Clarice

SILVIANO SANTIAGO

O esforço da narrativa ficcional de Clarice é o de surpreender com minúcia de detalhes o acontecimento desconstruído

Continuação da pág. 5-13

É também dado a posteriori como acontecimento o ovo que a galinha afobada bota diante dos olhos assustados da filha. Diz o texto: "Mal porém (a filha) conseguiu desvencilhar-se do acontecimento (grifo nosso) despregou-se do chão e saiu aos gritos: - Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!". Ao dar à luz um ovo, a galinha se livra da faca assassina dos homens pelo pedido da menina que estava seguindo com os olhos espantados a tragédia caseira. Ao inspirar bons sentimentos, a galinha, como qualquer mortal, adia a morte e reafirma o valor da vida. O micro-relato do acontecimento desconstruído dramatiza uma propensão do "instante-já", das coisas, das circunstâncias cotidianas, para que o ser humano se coloque em plena, concreta e instantânea experiência das virtudes utópicas: o bem, o amor, a luz, a alegria. A vida.
Se o acontecimento, no seu sentido tradicional, é de difícil interpretação, o acontecimento desconstruído é de difícil apreensão. O esforço da narrativa ficcional de Clarice é o de surpreender com minúcia de detalhes o acontecimento desconstruído. Ele é um quase nada que escapa e ganha corpo, é esculpido matreiramente pelos dedos da linguagem. A ficção oitocentista não soube como dar-lhe palavra, ou emprestou-lhe uma palavra desconfiada, classificando-o de sentimental ou condenável. Escreve Clarice: "E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito...". Faltou a Clarice tradição para escrever ficção como queria escrevê-la e, como consequência, muitas vezes o seu texto é interpretado mais pela paixão do que pela revisão dos princípios norteadores da boa e cosmopolita tradição crítica brasileira.
Ao se metamorfosear em acontecimento, a experiência imediata ainda permanece como um investimento do sujeito. Um passo outro e seguinte seria o de, pelo micro-relato, transformá-la em objeto da literatura, passível de descrição objetiva por parte do narrador. Explica Clarice: "Nesta densa selva de palavras que envolvem espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que no entanto fica inteiramente fora de mim". Enquanto objeto, o "é da coisa" figura nos textos de Clarice Lispector pelo pronome neutro da língua inglesa: "it" (Não se deve esquecer que a palavra "it" no cotidiano do século 20 passou a significar também a beleza feminina e o modo peculiar como ela atrai, seduz e domina o homem. Aí está o temível topos masculino da mulher vamp, vampiresca, que não nos deixa mentir).
Paradoxalmente, a literatura de Clarice deixa o "é" da coisa reganhar corpo e potência de movimento, exibindo-se em constante transformação para o leitor. Se o acontecimento pessoal (o subjetivo) é "corrupto e apodrecível", como se lê em "Água Viva", tão precário quanto o instante-já ou quanto o atrito da roda contra o tempo "biográfico", já a objetivação do acontecimento pessoal (o objetivo) é dada na linguagem de Clarice por uma metáfora reveladora tanto do modo concreto como o mundo se apresenta aos sentidos quanto do modo duradouro (espacializado) como se potencializa nele o tempo futuro, o seu vir-a-ser. Clarice metaforiza o "it" por uma imagem praticamente cabralina. O sol da atenção transforma a experiência subjetiva num "caroço seco e germinativo", potencializando-a.
As metáforas tomadas de empréstimo ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino para descrever experiências da vida humana não são mero artifício retórico em Clarice. Elas operam uma clivagem dentro do conceito tradicional de trabalho, delimitando o que, de certa perspectiva, é uma visão masculina da cultura para propor-lhe, como suplemento, uma concepção feminina da cultura.
No conto "Amor", a mãe de casa é dada como "lavrador", o seu trabalho é dado, primeiro, como o de "semear as sementes" para que germinem e, depois, como o de cuidar delas para que se tornem plantas viçosas (seres e coisas em pleno e harmonioso crescimento, dia após dia). Na ficção de Clarice, seres e coisas têm liberdade para poderem crescer e se relacionar independentemente da força voluntariosa do lavrador. Este não escraviza seres e coisas pela força, não os oprime por egoísmo, não os faz sofrer por injustiça. Deixa-os crescer em liberdade.
Leiamos no início de "Amor" esta passagem de alta voltagem metafórica: "Se (Ana) quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, cresciam a mesa com comidas...".
A materialização do tempo em biografia, o crescimento e a transformação do mundo, a evolução do gênero humano costumam ser dados como consequência da ação do trabalho do homem na natureza. O trabalho é concebido pela ciência como força humana impositiva e antropomórfica. Trata-se de uma concepção de trabalho eminentemente econômica e masculina, ou masculinizada, que é passível de ser historicizada, por exemplo, em termos de alienação ou de exploração capitalista, ou como forma de exploração do homem pelo homem. Na sociedade industrial, ou melhor, nas condições do progresso técnico, quantitativo, o trabalho é justificado por um valor mais alto -a produtividade- e é concebido como trabalho socialmente útil e necessário, mas não como trabalho individualmente satisfatório e individualmente necessário. Para retomar o alerta de Marcuse, a durée da satisfação nunca é dada como humana. Só o trabalho é legitimamente humano. Nas sociedades modernas, a existência passou a ser experimentada e vivida como trabalho. Em outras palavras, o trabalho tornou-se o conteúdo da existência. No ensaio citado, Marcuse corajosamente define o trabalho que se confunde com a existência como alienado, na medida em que ele nega "aos indivíduos a possibilidade de realizar e de satisfazer suas necessidades humanas e só proporciona satisfação acessoriamente, ou depois do trabalho". Nas sociedades modernas, o elemento qualitativo de progresso -não o quantitativo- é mais e mais relegado à condição sobre-humana ou subumana, à condição utópica. Alerta ainda Marcuse: dentro dessa concepção, o progresso técnico é condição prévia de todo progresso humanitário.
Clarice propõe um processo de desierarquização e, em seguida, de reierarquização. A conceituação quantitativa e técnica de progresso, a conceituação de base econômica e masculina de trabalho, é relegada a segundo plano, ao ser questionada e suplementada pelo conceito de labor. O labor é manifestação não da força humana alienada em trabalho socialmente útil e aferido pela produtividade, mas do cuidado, manifestação do "trabalho" que contribui para o progresso qualitativo do indivíduo e, por consequência, do homem. O cuidado re-orienta a história social tal como movimentada e explicada pelo homem. Pode levá-lo a perceber, caso abandone as intransigências do falocentrismo teórico, que existe uma forma suplementar de "trabalho" que, sem trazer à tona as injustiças desmascaradas pela análise do modo de produção capitalista tal como o faz a teoria econômica marxista, ou trazendo-as de maneira "oblíqua", para usar uma palavra cara a Clarice, é também e principalmente útil à vida. O labor reequilibra o processo de circulação das pessoas entre outras pessoas nas sociedades modernas e não se manifesta como ordenação imperiosa da natureza pelo homem.
O labor preserva metafórica e concretamente a natureza para dela receber uma lição de progresso e de vida. Graças à metáfora tomada de empréstimo pela literatura erudita de Clarice ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, o labor abraça homem e natureza, campo e cidade, abraça-os e os entrelaça num mesmo horizonte de expectativas, fecundo e amoroso, feliz. "Tudo é passível de aperfeiçoamento", não é outra a lição do conto "Amor". O labor não se manifesta pela força humana alienada única e exclusivamente em experiência do trabalho, em produtividade, repetimos com a ajuda de Marcuse. Ele é manifestação de proximidade e distância do objeto de cuidado, de um misto de vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz. É dom. Tem algo da economia na sua acepção etimológica: oikos, casa, e nomos, governo, o governo da casa, o governo do mundo. Tem algo a ver, nos relatos das viagens renascentistas da descoberta de novos mundos, com o trabalho anônimo da tripulação marinheira nessa casa flutuante que é o navio. Eles cuidam do navio que abre as portas do mar. Na utopia comunista de Marx, se lê que trabalho agrícola e trabalho industrial, trabalho rural e urbano serão um dia sabiamente combinados, ali se lê, ainda, que "na sociedade comunista o trabalho não será mais do que um meio para alargar, enriquecer e embelezar a existência dos trabalhadores (grifo nosso)". Não é outro o sentido do labor em Clarice, só que -grande diferença!- já passível de ser concretizado no cotidiano nosso.
Por duas vezes encontramos a palavra progresso no conto "Mistério em São Cristóvão" e as duas vezes sintomaticamente atada ao mês de maio. A primeira vez, logo no início do conto, para dizer que o progresso tinha chegado àquela família depois de muitos anos, pois tudo e todos crescem de maneira harmoniosa e verdadeira. Leiamos um curto trecho: "Depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso (grifo nosso) nessa família: pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios...". Continua o conto, descrevendo os efeitos do labor, incluindo entre as atividades do labor "os negócios do pai": "Sem se dar conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância". A segunda vez, ao final do conto, depois do micro-relato do acontecimento dramatizado. Os três cavalheiros mascarados olhando pela janela da casa e sendo olhados de dentro do quarto pelo rosto branco da mocinha. Esse instante é o momento em que o progresso se desfaz. Leiamos este outro trecho do conto: "E como o progresso (grifo nosso) naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve de se refazer quase do princípio...". Numa outra noite de maio, termina o conto, talvez de novo se pudesse apalpar o progresso.
Uma vez mais é preciso tomar cuidado na compreensão de vocábulos carregados tradicionalmente de significado estanque. O conceito de progresso em Clarice (como o de acontecimento, beatitude, trabalho etc.) não carece de apoio por parte da compreensão linear e ascensional do tempo, não pode ser apalpado por metros lineares, quadrados e cúbicos; pode e deve ser compreendido pelo movimento cíclico das estações do ano; pertence mais ao calendário agrário do que ao calendário cristão. O instante-já, que recobre um determinado e específico momento biográfico, sendo por isso uma estrutura de courte durée, ao ser referendado pelo calendário agrário, assume a estrutura de longue durée. As metáforas tomadas de empréstimo ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, de novo, servem para ratificar a dupla temporalidade própria do progresso qualitativo.
Maio é o mês por excelência do progresso, diz-nos o conto. A perigosa passagem de uma fase da vida em família para outra fase é tematizada pela passagem da velha para a nova estação do ano. Temos aí resquícios de uma cultura oral pagã numa das mais instigantes obras literárias escritas a partir dos anos 40. Num instante preciso, mocinha e tempo atravessam uma crise sazonal. Maio é o mês da crise e da revelação, da evolução. Nesse mês é que se dá o rito de fertilidade da mocinha. Mocinha e tempo vivem ambos com a promessa de nova semeadura, colheita, messes e vindima. Diante da promesa latente nas coisas, da propensão de um canteiro de gerânios, os cavalheiros mascarados, qual feiticeiros, interrompem a caminhada noturna e festiva para o baile, para o sabá. Interrompem ao mesmo tempo o fio da vida da personagem, pondo em xeque o progresso naquela família. Ou seriam os cavalheiros espíritos que saem do corpo da menina no momento em que dorme profundamente? Pouco importa, se espíritos ou se cavalheiros mascarados, o que importa é que nunca se divertiram com tanta felicidade. A haste de um gerânio é encontrada partida pela avó. Um fio de cabelo branco aparece na fronte da mocinha.
Como não lembrar o poema "Mês de Maio", de Jorge de Lima. Esse "mesinho brasileiro", como carinhosamente o poeta o apelida, teve o seu dia primeiro escolhido para ser dia do Trabalho. Desde que se defina o conceito de trabalho pelos ensinamentos da aula inaugural de Clarice Lispector.

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