São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dona Zélia, cortaram a luz da Claudia

ELIO GASPARI

Há um leve cheiro de satanização no episódio da prisão de Zélia Peixoto de Castro Palhares, em cuja mansão dois técnicos da Light do Rio de Janeiro acharam um "gato" que roubava eletricidade. Um leve cheiro de satanização e um forte, fortíssimo, cheiro de que o brilho das luzes da "maison" Peixoto de Castro era furtado. Furtado daquele jeito que se supõe ser o hábito da escumalha: enfia-se um fio na rede da Light, joga-se a energia para dentro do barraco e estamos conversados. As luzes da casa estavam acesas, mas o medidor de consumo de energia estava imóvel como um defunto.
Hoje o sobrenome Peixoto de Castro identifica uma das melhores criações de cavalos do país e uma discreta família da plutocracia carioca. Na era Vargas, como diria FFHH, Peixoto de Castro equivalia a uma Petrobrás somada à Loteria Federal. O avô de Zélia era concessionário dos bilhetes e sócio da primeira refinaria construída no Brasil, a de Manguinhos. Certamente um dos dez homens mais ricos de Pindorama.
Na madrugada de sábado, sua neta recebeu voz de prisão e foi mantida com guarda na porta por dois dias. Quem não haveria de se deliciar com uma história dessas? Dois fiscais cujos salários não somam R$ 3 mil por mês descobrem uma casa onde tudo o que reluz é ouro, mas a eletricidade é furtada. São presos pela tropa que vigia a casamata, mas acabam salvos pela polícia que desarma os capangas e prende a dona.
Em matéria de efeito para demonstração, o episódio foi um sucesso.
O cheiro de satanização está nos detalhes. Os técnicos da Light que descobriram o furto teriam sido mantidos em cárcere privado pelos seguranças da mansão. A polícia teria sido impedida de entrar na propriedade por capangas armados de escopetas.
Não havia escopeta, pois apreenderam-se apenas dois revólveres (ambos registrados). Os fiscais da Light seguem uma norma que lhes recomenda ficar perto do medidor fraudado até a chegada da polícia e preferiram continuar na casa mesmo depois que o advogado da família pediu que a deixassem.
De qualquer forma, o delegado que deu voz de prisão à senhora não lavrou em seu flagrante acusação de porte de armas ilegal ou constrangimento dos funcionários.
Pouco se ganha vendo Zélia Peixoto de Castro como uma imperatriz chinesa cercada de janízaros, protegendo o "gato". Sem sobrecarga, a história melhora.
Basta achegar-se à cena. Quem quiser entrar na rua Alexandre Stockler, onde está a "maison" Peixoto de Castro, precisa passar por uma cancela. Quem a pôs lá? Os moradores, para identificar os cidadãos que pagam os impostos com que se constroem ruas, mas que nelas só podem transitar se lembrarem aos guardas com quem eles estão falando. Coisa normal nos bairros mais altos. Normal na Gávea, que de tanto subir chegou perto da descida da favela da Rocinha. Segue-se melhor o fio da história acompanhando as linhas da Light e viajando alguns meses no tempo. Da Gávea, elas atravessam as montanhas cariocas, entram na zona norte e seguem a linha do trem, até a Pavuna. Lá, perto da Metalúrgica Apolo, havia em junho um terreno baldio de 40 mil metros quadrados. Mais que baldio, depósito de entulho. Inútil desde os anos 30, até que na noite de uma sexta-feira foi invadido por 120 famílias. Nelas, contavam-se 120 crianças.
Entre os invasores, numa cena narrada pelo repórter Paulo Mussoi, estava Claudia Regina, uma analfabeta sem sobrenome. Foi vista sentada sobre uma caixa de papelão, com o filho de nove meses e com pneumonia enrolado num carpete. Muitos dos seus companheiros de aventura falavam em resistir, mas, quando chegaram os camburões da polícia, mudaram-se para o outro lado da ferrovia, onde estão até hoje. Talvez estejam até melhor, porque iluminavam suas barracas de plástico e papelão com eletricidade furtada à linha da Metalúrgica Apolo. Para não dar refresco aos invasores, a empresa cortou a energia e deixou-os à luz de velas e lanternas.
A Metalúrgica Apolo e o terreno invadido (que agora abriga uma construção) pertencem ao grupo Peixoto de Castro.
Quando as pessoas que não têm onde morar invadem terrenos alheios, são vistos como bêbados, bandidos e baderneiros. (Em São Paulo, a PM do governador Mário Covas já matou três.) É a satanização da pobreza. Ela sugere que só há paz atrás das cancelas. Quando são adicionados toques teatrais à prisão de uma milionária, em flagrante delito, pode-se até ficar com a impressão de que o jogo empatou, mas a satanização da riqueza é pouco mais que um "gato". O problema da Gávea resolve-se fácil. O da Pavuna continua do mesmo tamanho.
Zélia Peixoto de Castro e Claudia Regina analfabeta vivem no mesmo mundo. Não era necessário tanto aparato para esfolar o "gato" da senhora, da mesma forma que os sábios do grupo Peixoto de Castro talvez se dêem conta, agora, de que não era necessário cortar a luz daqueles invasores sem sobrenome. Quem seria capaz de supor que um dia Zélia e Claudia dividiriam uma mesma história, sob a luz da Light?

Texto Anterior: Covas nega irregularidades na CDHU
Próximo Texto: Sindicância isenta diretor do IPT de dolo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.