São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 1997
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Em sociedade desigual, o luxo vira necessidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O calor, o trânsito e o aumento do IPI precipitaram uma decisão ousada para os meus padrões de consumo: comprar um carro com ar-condicionado. Minha tendência é ser pão-duro. Misturo um certo moralismo de esquerda ao meu hábito de avareza e nobilito ambos com um preconceito de classe: gastar dinheiro em bobagem? Coisa de novo-rico...
Poderia ser feita, aliás, uma sociologia do anticonsumismo, da consciência ecológica. O quanto não há de horror aristocrático à vulgaridade, à breguice, nesses movimentos?
O quanto de renda declinante ou de insucesso econômico não se transforma em amor à natureza?
Mas voltando ao ar-condicionado no carro. Antigamente, isso era um luxo impensável. Aprendi que, hoje em dia, até carros mais ou menos populares como o Gol ou o Kadett dispõem desse recurso.
Sou, então, o feliz possuidor de um carro refrigerado. Isso muda tudo. Começa pelo barulho do automóvel. Há uma vibração a mais, constante, discreta, cuja gradação posso mudar. Meu poder aumentou.
E o carro se transforma numa espécie de sala de reuniões, num gabinete, num escritório executivo. Ligo o pisca-pisca e entro numa rua como se tomasse uma decisão importantíssima.
Fiquei mais racional. O congestionamento me irrita, como sempre. Mas agora me irrita a frio. Não me faz sofrer fisicamente. Sinto a perda de tempo como uma coisa abstrata, como uma irracionalidade do sistema urbano, e não mais como uma agressão física, como um "sufoco".
É que o ar-condicionado me distancia do "real". O barulho da rua diminui muitíssimo. Uma sirene de ambulância, por exemplo. Com os vidros fechados, toda a urgência daquele apelo se esvai, torna-se longínqua. Sou eu o moribundo: será que a vida vale a pena? Como se estivesse do alto de um prédio, vejo formigas se agitarem, laboriosas, em silêncio.
Dirigir se torna mais agradável e também mais perigoso. Como não estou ouvindo o ruído dos carros, cada um deles atravessa meu campo visual ao modo de um slide, num deslizar em duas dimensões. E os motociclistas, então?
Já eram perigosíssimos quando eu não tinha ar-condicionado. Já eram o universo das duas dimensões se esgueirando pela materialidade sólida das carrocerias. Agora, simplesmente inexistem; são elétrons suicidas enquanto me aboleto no estofamento neutro do meu automóvel novo.
A grande vantagem do ar-condicionado, entretanto, é outra. É quando o carro pára num cruzamento. Passam mendigos, vendedores de Mentex, vendedores de porcarias: isolo-me diante de tantas solicitações impertinentes.
Para não falar de assaltos. Fiquei protegido, percebo, não contra o puro e simples calor, mas contra as demais agressões que me reserva o ambiente brasileiro e tropical. Fecho-me. Não, obrigado. Eis a quintessência do conforto. Nem os desconfortados me perturbam.
A moral da história é a seguinte. O que antes era luxo -o ar-condicionado- tornou-se necessidade. Óbvio que, numa cidade como São Paulo, um carro com ar-condicionado deixa de ser, "verbi gratia", "frescura", para se transformar em artigo de "primeira necessidade".
Chegamos ao ponto que eu queria ressaltar. Todo luxo se transforma em necessidade quando se vive numa sociedade desigual. O conforto vira, de certo modo, um imperativo de sobrevivência. O supérfluo se torna essencial. A própria idéia de luxo se justifica, moralmente, como "necessidade da vida moderna".
Os marxistas sempre disseram que, no futuro, o homem viverá no reino da liberdade, contrapondo a isto o reino da necessidade, no qual se esfalfa a grande maioria dos seres humanos. Isso era dito por volta de 1850. Por volta de 1890, Oscar Wilde inaugurou um novo tipo de utopia: aquela onde houvesse luxo e beleza para todos.
É como se, loucamente, o progresso técnico tivesse assegurado uma série de luxos, que se tornam mais necessários à medida que o resto da humanidade se encontra excluído de sua fruição. "Necessidade" e "superfluidade" transformaram-se numa coisa só.
Eis uma má notícia para a elite econômica. Não há luxo gratuito, ostentação fabulosa, que não se torne coisa utilitária; falar da "necessidade" de um ar-condicionado no carro, por exemplo, é renunciar, por culpa e realismo, ao prazer de possuir um mecanismo de luxo, é renunciar a um "opcional" por puro capricho.
Desse modo, mesmo a elite se justifica -humanisticamente, aliás- ao dizer que "é impossível viver sem ar-condicionado no carro". Assume bravamente os direitos do ser humano em geral. O privilégio se oculta como necessidade humana. O mundo da liberdade, mais uma vez, é reprimido: pois mesmo no elogio ao luxo -onde essa liberdade, afirmada como privilégio, surgia como promessa utópica- o que se vê é um ato de submissão.
O burguês se submete, docemente constrangido, às imposições de uma ordem que seu próprio privilégio criou. Nega o mundo da liberdade mesmo quando a exerce, pois a exerce como um "luxo necessário". Por acaso, a lei o favorece; não se sente menos oprimido por esse acaso.
Revolta-se contra os oprimidos verdadeiros, claro. Eles diminuem o grau de sua qualidade de vida. Os mendigos expressam, no fundo, a liberdade que ele gostaria de ter. Privado dessa liberdade, ele procura o luxo; mas o luxo deixa de ser luxo, prazer etc., para ser proteção, segurança, conforto entre quatro paredes. Os próprios burgueses são vítimas do capitalismo. Mas o socialismo nunca se deu ao trabalho de convencê-los disso.

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