São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 1997
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Oswaldo Aranha, judeus e verdade histórica

PEDRO CORRÊA DO LAGO

Em 29 de novembro, comemorou-se o cinquentenário da votação da ONU que aprovou a partilha da Palestina e criou condições políticas para a criação do Estado de Israel, em 1948.
Nesse dia, a Folha publicou dois artigos com opiniões diametralmente opostas sobre Oswaldo Aranha, presidente da Assembléia Geral da ONU que tomou a decisão histórica em 1947.
Um, da professora M. L. Tucci Carneiro, repetia os surrados argumentos de sua tese de 1987 em que procurava "destruir o mito" Aranha. O outro, de Alberto Dines, mostrava com equilíbrio a visão desapaixonada que os estudos mais recentes trouxeram ao tema.
A professora insiste há dez anos numa hipótese que, quando surgiu, tinha pelo menos o mérito da novidade: Aranha, até então tido como o maior amigo brasileiro de Israel, teria proposto, como ministro do Exterior, uma política severa de restrição à imigração judaica no Brasil do Estado Novo.
Preocupada em garantir para sua tese a maior repercussão possível na imprensa, a professora inserira em seu trabalho de doutoramento um magro capítulo oportunista, no qual, sem base documental séria e distorcendo ou ignorando fatos fundamentais, tentava provar sua "revolucionária" teoria, ocultando os verdadeiros autores da política restritiva da era Vargas.
Conseguiu, de fato, alguma repercussão na época; parte da mídia está sempre interessada na "destruição de mitos". Mas não obteve, em dez anos, nenhuma adesão ou endosso acadêmico. Atraiu uma série de contestações por parte de pesquisadores, historiadores, jornalistas e testemunhas oculares dos fatos relatados, alguns dos quais ridicularizaram suas conclusões e as fraquezas óbvias de seu trabalho, de impressionante superficialidade.
Por sua vez, Dines, colunista da Folha e um dos mais respeitados jornalistas do país, publicou no mesmo dia um artigo de grande seriedade, que apresenta a visão amadurecida de quem se interessa pelo tema do anti-semitismo no Brasil há mais de meio século.
O jornalista se refere às já desgastadas posições da professora chamando-as de "esforço 'revisionista' acionado por vedetismo e vendeta". O vedetismo tem levado a professora a preferir temas polêmicos, por se deliciar claramente com a atenção que alguns jornalistas incautos ou desatentos concedem às suas declarações bombásticas, sem preocupar-se em verificar a veracidade. Quanto à "vendeta", há sem dúvida o ressentimento contra seus contestadores que não ostentam, como ela, o título de doutor e cujos argumentos podem, por isso, ser menosprezados.
Não sou doutor. Sou apenas mestre em economia e escrevi, em 1985, uma tese de história econômica sobre a Sumoc, precursora do Banco Central.
Pesquisei inúmeros documentos inéditos e não fiz uma só afirmação em meu texto que não tivesse ampla base documental. Meu orientador, Pedro Malan, foi extremamente rigoroso. Além disso, trabalho com documentos históricos há mais de 20 anos e respeito profundamente as fontes originais.
Sou também neto de Oswaldo Aranha e, se não o fosse, certamente não teria descoberto os erros flagrantes, as omissões sistemáticas e as falhas primárias da suposta "pesquisa" da professora. Ela enganou muita gente boa, que não teve, como eu, a mesma motivação pessoal de ir atrás das fontes.
Os leitores supuseram o óbvio: nenhuma afirmação tão categórica e aparentemente ousada poderia ser feita sem base documental a toda prova. É estarrecedor descobrir que todos os documentos usados pela professora no capítulo sobre Aranha são falsamente atribuídos ou interpretados de forma distorcida. Por exemplo, um documento que ela diz ser assinado por Aranha não está com a sua letra nem assinado por ele! A imprudência é tal que ela não hesita em reproduzir uma foto do documento no seu livro, como para tornar ainda mais óbvio seu erro primário.
Não sou um simples descendente querendo defender uma imagem idealizada de seu avô. Aranha cometeu erros, como qualquer homem público, e certamente compartilhou, de início, alguns dos preconceitos correntes em sua época, que comenta em cartas, como o mito da infiltração de judeus nos movimentos de esquerda e o poder das famílias de origem judaica nas finanças internacionais. Também não lhe agradava a idéia da formação, no Brasil, de guetos de estrangeiros que não quisessem se integrar à população local.
Mas desafio a professora a apresentar qualquer argumento, além desses comentários (comuns a muitos políticos de esquerda da época), que demonstre que Aranha era anti-semita.
O fato que a professora não quer revelar, pois arruinaria sua teoria, é que, precisamente na fase em que Aranha podia influir sobre a concessão de vistos, o Brasil foi o país que mais recebeu judeus depois dos EUA e da Palestina.
Infelizmente, sua insidiosa campanha de difamação, movida pela necessidade desesperada de encontrar na mídia o destaque que sua carreira acadêmica não lhe traz, tem feito algum mal à imagem de Aranha, que pôde, felizmente, ser defendida nos últimos anos por historiadores competentes, brasileiros e estrangeiros, vários dos quais judeus. Todos contestam suas conclusões.
Deixo a palavra a Alberto Dines: "Aranha foi decisivo no enfrentamento cotidiano com o esquema nazifascista doméstico (militar e civil) e externo. Hoje não se avalia quão perto estivemos de gravitar na órbita do Eixo... A Aranha deve ser creditada grande parte dessa reviravolta geopolítica". Até mesmo Joseph Goebbels reconhecia isso, ao anotar em seu diário: "Nosso maior inimigo no Brasil é Aranha".
Para completar, bastariam as posições assumidas publicamente por duas das maiores autoridades judaicas. Stephen Wise, grão-rabino dos EUA -primeiro a revelar, em 1942, a um mundo ainda incrédulo os horrores do holocausto-, propôs, em 1948, Aranha para o Prêmio Nobel da Paz, plenamente informado de sua atuação no Brasil durante a Segunda Guerra.
Há poucos dias, o grão-rabino do Brasil, Henry Sobel, confirmou na TV suas convicções a respeito da atuação de Aranha em favor da causa dos judeus. A professora prefere interpretar essas e outras manifestações, que se repetem há 50 anos, como parte de um grande complô para esconder uma supostamente incômoda "verdade histórica", que, como é seu hábito, afirma existir sem nenhuma base documental.

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