São Paulo, sexta-feira, 12 de dezembro de 1997
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Voz da artista 'de candomblé' ataca limites da MPB

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Era uma vez uma sambista de perfil popular e de sucesso gigantesco, que -talvez por isso- nunca contou com a devida atenção dos mais "elitizados" e, morta prematuramente, cada vez menos teve lembrada sua contribuição àquela coisa chamada MPB.
Clara Nunes morreu há 15 anos, e talvez a presente reedição de sua obra completa fosse a oportunidade ideal para uma reavaliação de sua estatura nesse cenário.
Pois é. Quase inexistentes são as ocasiões em que, ao se enumerar as "maiores cantoras do Brasil", se coloque Clara ao lado de Gal, Bethânia ou Elis. Mas a audição de sua obra faz saltar aos ouvidos: é inexplicável que seja assim.
Se houve constâncias na carreira de Clara -e houve várias-, a maior delas é a de que não há altos e baixos em sua capacidade interpretativa. Desde o hoje quase implausível disco de boleros "A Voz Adorável de Clara Nunes" (preste atenção no nome), rezou na cartilha de excelência de outra estrela subvalorizada, Elizeth Cardoso.
Clara, de trajetória paralela ao furacão de inovações tropicalistas, representa a evolução de uma linhagem que mescla o exibicionismo de Carmen Miranda, a objetividade de Aracy de Almeida, a tristeza morna de Dolores Duran, o porte majestático de Elizeth. O traço comum? O bem cantar.
Não se trata aqui de absorver influências externas -não há bossa nova em Clara, com exceção possível do disco "romântico" "A Beleza Que Canta", de 69, não há pop universalista em Clara.
Ela é da outra vertente: do samba de morro, de interior (interpretava o mineiro Ataulfo Alves no início de carreira) e de litoral; de candomblé e umbanda, de sincretismo religioso e de miscigenação.
Começou bem perdida, compactuando com a EMI uma imagem à Altemar Dutra forjada pelo maestro Lírio Panicali, ora de cantora de festival ("Você Passa e Eu Acho Graça", 68 -já cantava como ninguém, ouça "Pra Esquecer", de Noel), ora de "sambossa".
Aí ela ouviu, na madrugada -quem conta é Paulo César Pinheiro-, o programa radiofônico de samba de Adelzon Alves. Não o conhecia, mas quis que fosse seu produtor. O resultado foi uma desfilar de discos clássicos, de 71 a 75.
Em "Misticismo da África ao Brasil" (71), já sintetizava quem seria -alguém pode calcular a imensidão oculta nos versos "tem areia, oi, tem areia/ tem areia no fundo do mar, tem areia"?
Não havia territorialidade em Clara. Muitos pensaram que era baiana, quando saiu cantando Caymmi, Zé da Bahia ("eu vim da Bahia pra cantar"), "Ê Baiana".
Muitos pensaram que era sertaneja sofrida, daquelas que viveram na carne as agruras da seca, quando saiu cantando "Seca do Nordeste", "Último Pau-de-Arara".
Outros pensaram que era pernambucana litorânea, quando saiu frevando Capiba e Luiz Bandeira, celebrando "Homenagem a Olinda, Recife e Pai Edu" ou antevendo o mangue beat ("Vendedor de Caranguejo", de Gordurinha).
Outros muitos acharam que era carioca do morro, quando aderiu à Mangueira e aos mais nobres sambistas -cantou Nelson Cavaquinho, Cartola, Monarco, Carlos Cachaça, Bide e Marçal, Darcy da Mangueira, Paulinho da Viola.
E ela era mineira desapegada, como definiu "Quando Vim de Minas" (73) -o autor, mais que simbólico, é Xangô da Mangueira.
Quase todos pensaram que era macumbeira, quando popularizou títulos como "Tributo aos Orixás", "Conto de Areia", "O Mar Serenou", "A Deusa dos Orixás", quase todas contribuições de Candeia e da dupla Romildo-Toninho, "autores de Clara".
Estereótipos fincados, passou à fase "intelectual" de sua carreira ao adotar como produtor e marido Paulo César Pinheiro, que aplicou serenidade a suas intenções.
Daí nasceram manifestos de sincretismo ("Canto das Três Raças", "As Forças da Natureza"), primorosos arranjos sanfonados de Sivuca ("Feira de Mangaio", "Viola de Penedo"), sambas-enredo ("Portela na Avenida", "Serrinha"), blocos afro ("Ijexá", ápice da bela associação com o compositor Edil Pacheco), mais sucesso ("Morena de Angola", feita para ela por Chico Buarque).
Sua utopia foi a da integração, a do congraçamento, a da "brasilização" em vez da corrente globalização. Se tal projeto faliu ou não, é coisa que todo sambista deve perguntar ao travesseiro toda noite.
A (tardia) iniciativa da EMI em recuperar essa fatia de história vem concorrer para o restabelecimento de certas relevâncias.
Com Clara de volta, o portal do ano 2000 torna-se mais próprio a quem queira compreender, em música popular, o que foi o século que se escoa. É um passo, faltam outros (onde estão Clementina, Elza Soares, Elizeth?).
E, sobretudo, após Clara, falta um gesto -o gesto- que permitirá que a MPB adentre os anos 2000 sem que precise se envergonhar de sua própria displicência: a reedição -e aí a coisa é com a PolyGram- da obra da figura-síntese do século 20, Nara Leão. (PAS)

Coleção: Clara Nunes (16 títulos)
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 18, em média, cada CD

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