São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 1997
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De assistente a oficiante

NELSON AGUILAR

O catálogo trepida nas mãos do consulente. Reenvia à inauguração mundial da exposição, na Galeria Nacional do "Jeu de Paume", em Paris (7/1 a 9/3/97), na qual se conjugaram a destinação originária e a atual do edifício, ou seja, abrigar artistas da luz e do movimento -outrora impressionistas-, e, recentemente, Jesús Rafael Soto.
Soto não adere aos rótulos que a história da arte tenta lhe pregar. "Óptico" ou "cinético" não esgotam o sentido de seu fazer. Distinta de Vasarely ou Le Parc, sua produção continua única. O segredo da singularidade pode ser percebido lateralmente no belo livro de entrevistas que Catherine Millet consagra a Denise René ("Conversations avec Denise René", Paris, 1991). A galerista arrepende-se de não ter admitido Lucio Fontana e Yves Klein entre seus artistas. No Museu Soto, em Ciudad Bolivar, feito com acervo do inspirador, ambos estão representados. No vernissage do Mac, lembrou que, apesar de sua insistência, Denise permaneceu inflexível, considerando "revisionistas" os dois candidatos. Quem conhece o dogmatismo do lobby geométrico imagina as dificuldades ideológicas. Há três anos, na feira de artes de Colônia, a galerista, escoltada por Carlos Cruz-Diez, perguntou-me, com olhos inquisitivos: "É verdade que Cícero Dias é abstrato em Paris e figurativo no Brasil?". Uma resposta sem nuances comprometeria o universal pernambucano. A fim de evitar uma divagação sobre o mimetismo, ponderei: "Tão figurativo quanto o Maliévitch dos anos 30". A tensão desanuviou-se.
O catálogo alinha companheiros de armas de Soto. Michel Butor organiza poema em sua homenagem, com oito estrofes em forma de quadrados, cada qual com nove versos negros alexandrinos e oito azuis octossílabos, e a última estrofe com 13 versos negros formatada da mesma maneira. Os negros compõem a arte poética, e os azuis, com permutações de palavras, desenvolvem um ritmo álacre. Butor cria homologicamente "La Cajita de Villanueva" (1955) do artista plástico.
O ensaio "O Imaterial de Soto e a Pintura do Continuum", de Arnauld Pierre, aponta como a obra destrói a forma composicional, põe em xeque os suportes habituais e desmaterializa o objeto artístico, o que justifica a presença do venezuelano tanto na 22ª quanto na 23ª bienais de São Paulo, que têm como horizonte essas questões.
Ao contrário de muitos adeptos da abstração geométrica, Soto não se tranca nas premissas e capta movimentos que aparentemente as contradizem. Nessas alturas, a disciplina óptica reitera preceitos de laboratório, reduzindo-se à ilustração de leis da psicologia da forma. O advento do novo realismo encontra em Soto um aliado e rompe com a assepsia retiniana. Desde o primeiro momento, Jean Tinguely, Daniel Spoerri e Yves Klein o acolhem. O denominador comum dessa união incide na constatação do automatismo da abstração, tanto lírica quanto geométrica, e na apropriação do entorno como obra de arte. Tinguely descobre o potencial explosivo do ferro-velho, ressuscita os fantasmas da primeira revolução industrial, coreografando movimentos maquinais. Spoerri mergulha no lixo em busca do espaço-tempo não captado pelo usuário ocidental e desfila relacionamentos nos quadros-armadilha que tornam Lautréamont um principiante na formulação de imagens estranhas. Klein, partindo do monocromatismo, chega em 1958, na Galeria Iris Clert, à exposição sobre o vazio, com salas e paredes despojadas de qualquer objeto. Muitos vêem hoje nesse evento o nascimento da arte contemporânea.
O mural de Soto (1961) atesta o estado de coisas e mostra a extrema proximidade da escola de Paris com os neodadaístas norte-americanos, especialmente Rauschenberg. Dois anos mais, Boulez rege "Wozzeck", de Alban Berg, no Teatro Nacional da Ópera de Paris. A pobreza encenada no palco grita na "soirée" de gala. Jean Genet é chamado pelo regente como consultor da miséria. O poder do lixo manifesta-se e dissemina dúvidas quanto à neutralidade da abstração. "Leños Viejos" trazem algo dessa atmosfera, madeiras cravadas de pregos a São Sebastião, seladas com o feixe de verticais negras e brancas que saúdam a passagem vibratória da luz.
O artista rompe o namoro com o novo realismo, volta-se para a caligrafia depurada das peças cinéticas até inventar, em 1967, o penetrável. No catálogo, comparece o cubo penetrável, encomendado para a mostra, azul-branco-vermelho, estrutura de alumínio laqueado, hastes móveis de resina acrílica. O dispositivo não viajou para São Paulo. Teria sido oportuna a exibição no MAC do exemplar que o artista e a Fundação Bienal doaram à instituição uspiana, depois do encerramento da 22ª Bienal. Com os penetráveis, cai definitivamente a barreira entre espectador e obra. Esvai-se a função contemplativa do público que, de assistente, torna-se oficiante. Os fios que pendem do alto até o chão convidam a pessoa a atravessá-los, proporcionando a experiência física e sensorial do tempo e do movimento.
Ao analisar o domínio musical de Soto, Marc Collet (págs. 33-38) menciona os penetráveis sonoros, construídos em tubos de alumínio com secção circular ou quadrada e suspensos por fios de nylon, cada qual emitindo uma nota musical. O participante converte-se em badalo, uma sinfonia por travessia. Segundo Soto, os penetráveis assumem o elã de "As Meninas", de Velázquez, portanto da interpenetração do próximo e do distante, da ambiguidade entre o espaço de paisagem e o de câmara, da subversão da luz, fonte de todas as permutas espaciais. Outra ascendência viria da inspiração trazida pela ação de Pierre Boulez nos concertos do "Domaine Musical", frequentado entre outros por Vieira da Silva, Nicolas de Staël, André Masson, Joan Miró, Henri Michaux. Soto tira partido da música serial para realizar, como os títulos confirmam, "Primeiro Quadrado Vibrante" (1958), "Harmonia Transformável" (1956), "Pintura Serial" (1952/53).
As séries de "Ambivalências" que dominam a última fase do artista, onde as cores avançam e recuam diante do ambiente linear branco e preto dos suportes, lembram a arquitetura do espaço de projeção do Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica-Música (Ircam) de Paris. No MAC, o arquiteto Gabriel Borba optou por apresentar a exposição como um amplo fresco zurbaraniano no exterior e colorístico no núcleo, permitindo uma progressão do público de largo a andante.
A exposição oferece uma oportunidade privilegiada para pensar o acesso ao espaço em Soto e em Oiticica. Ambos questionam o suporte artístico convencional, ambos consideram o penetrável como envolvimento total do espectador na obra. As diferenças eclodem mais tarde, quando o brasileiro tem a revelação da dança como ato expressivo total, desaparecendo a separação entre sujeito e objeto como problema. Neste ínterim, Oiticica descreve o que chama "a transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade" ("Revista Habitat", São Paulo, dezembro 1962, nº 70). Conta como chega ao monocromatismo, abolindo a distinção de fundo e forma, uma vez que o ato de pintar se confunde com a estrutura da pintura. A cor única fornece não só o êxtase do inseparável, conforme depoimento de Yves Klein, mas o conduz ao espaço tridimensional, pois o chassi do quadro desponta como limitação, um "a priori" inadmissível para quem quer lidar com o espaço e o tempo puros, em vias de se proferir. Para atacar essa nova problemática, Oiticica desenvolve os núcleos e os penetráveis. Os núcleos são dispositivos pendentes como biombos aéreos. Os penetráveis desdobram um ambiente global, colocando o espectador em uníssono com o descobrimento do obra.
Daí ocorre a convergência do projeto de ambos artistas. O desentendimento posterior começará por conta de datas. Oiticica elabora o primeiro módulo em 1960 e Soto em 1967, logo o primeiro reclama a primazia, um pouco como na polêmica do conceito de tropicália codificado pelo artista e apropriado por Gil, Caetano e afins. Críticos europeus como Guy Brett e Jean Clay reconhecem uma especificidade de procedimento nos dois criadores sul-americanos, que inaugura uma nova maneira de sentir a arte.

Onde: A exposição de Jesús Rafael Soto vai até o dia 10 de janeiro, no Museu de Arte Contemporânea do Ibirapuera.

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