São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 1997
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O que ela diria desse mundo?

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Não são poucas as vezes que tenho me perguntado, diante de tudo que tem acontecido nos últimos anos, como Ana Cristina César reagiria, o que ela pensaria, o que ela diria.
Quando Ana se foi, em 1983, o Brasil ainda não elegia presidente, a Aids era um boato, o videocassete começava a conquistar os lares da classe média, o microcomputador não era um utensílio doméstico, não havia Internet, a União Soviética permanecia inteira, a palavra globalização não circulava, ninguém imaginava que Fernando Henrique Cardoso fosse chegar um dia à Presidência, que Francisco Weffort seria ministro e que Arnaldo Jabor faria comentários no "Jornal Nacional".
A primeira vez que vi Ana Cristina César foi numa reunião de um grupo de jornalistas, artistas e intelectuais -em torno da liderança anárquica e divertida de Júlio César Montenegro- para lançar um jornal alternativo que viria a se chamar "O Beijo".
O grupo, grande e bastante heterogêneo, tinha em comum o sentimento de inadaptação à cultura hegemônica de oposição ao regime militar, ainda bastante influenciada pelo ideário do Partido Comunista, nacionalista, conteudista e populista. Queríamos discutir sexo, feminismo, falar de Foucault, poder criticar abertamente a União Soviética, a herança cultural do CPC, a estreiteza da militância e a própria imprensa.
Lembro dela no canto, bonita, de jeans, olhos azuis e míopes atrás dos óculos. Nessa época, Ana implicava terrivelmente com a literatura "sabor povo" que andava em voga.
Detestava também a poesia e a canção engajadas, que colocavam a política ou o "social" à frente da linguagem. Sentia-se minoritária em seu refinamento letrado, em seu universo europeu, em sua delicadeza poética.
Não gostava inteiramente, também, do que se convencionou chamar de poesia marginal -categoria com a qual ela já foi identificada. Embora tivesse amigos e gostasse de alguns poemas, mantinha a distância que sua sofisticação impunha.
Ana gostava mesmo de Mallarmé, de Baudelaire, de Walt Whitman, de Emily Dickson, de "Judas, o Obscuro" (livro que a deixou eufórica e com o qual me presenteou com a dedicatória: "Para ler e enlouquecer"), de Roland Barthes, de Lawrence Ferlinghetti, de Jorge de Lima, de Godard e de Janete Clair.
Ela amava o "O Astro", com Francisco Cuoco. Lembro que fazia anotações (era do tipo que vivia com caderninhos, registrava às vezes compulsivamente o cotidiano, como se ele só se realizasse em texto) e tinha planos de escrever sobre a novela e sua autora.
Gostava, também, de Caetano Veloso, referência da geração anterior, ao lado de Torquato Neto, cujo suicídio pairou sobre nossa geração. Quando saiu o disco "Muito", ela apaixonou-se pela letra da canção-título (adorava o "juro que eu não presto" e o "falo de quantidade e intensidade") e por "Terra" -que dizia ser o melhor poema do ano. Quando voltou da Inglaterra, falava muito de um grupo "novo", chamado Police.
Ana gostava ainda de Chico e Clara Alvim, de Heloisa Buarque de Holanda, de Ana Carolina, de Armando Freitas Filho e de tantos outros amigos que, como eu, devem se perguntar o que ela diria desse mundo que não mais conhece -embora, felizmente, dele continue fazendo parte.

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