São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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A cruzada de Tony Blair

MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Educação, educação, educação" foi o slogan do Partido Trabalhista britânico nas eleições de maio de 1997 e uma das grandes razões da estrondosa vitória que os levou ao poder após 18 anos de oposição. Decorridos seis meses de governo, a incansável e polêmica atividade do Departamento de Educação e Emprego parece mostrar que aquele slogan não era simplesmente parte da estratégia eleitoral e que educação é, de fato, a prioridade número um de Tony Blair e sua equipe. Considerando a raridade de tal atitude governamental, bem como a declarada (e nada modesta) ambição de tornar o Reino Unido a "nação-modelo do século 21", a "luz a iluminar o mundo todo", um breve balanço das propostas trabalhistas pode ser sugestivo e estimulante.
A cruzada da excelência
No discurso em que o primeiro-ministro expôs o programa de ação para o novo milênio, ficou evidente que a modernização da educação britânica é vista como a condição sine qua non para a realização das altas ambições do governo recém-eleito. Fazer do Reino Unido "o melhor lugar para se viver" exige que aí se criem nada mais, nada menos do que "as melhores escolas do mundo"! Dar um basta "às gangues de adolescentes desocupados" que ameaçam a sociedade exige "educação, educação, educação". Eis chegada a hora, disse o eufórico e carismático primeiro-ministro, da nação retomar a liderança nas inovações e de, ao lado de invenções como a penicilina, o telefone e o computador, liderar a cruzada da excelência em educação.
Deixando de lado o ufanismo exacerbado do que os críticos chamaram de "evangelho Blair" ou sermão da "Igreja da Modernidade", as medidas educacionais anunciadas (e muitas já em franco processo de realização) têm, de fato, o rápido melhoramento das escolas britânicas como alvo; alvo que não permite qualquer condescendência para com a mediocridade, incompetência ou fracasso. Em educação, afirmam repetidamente Blair e seu ministério, não se aceitará "nenhum fracasso, nenhum artigo de segunda".
Mudanças ocorrem em vários níveis: a educação pré-escolar, antes bastante limitada, será estendida às crianças a partir dos quatro anos de idade; classes primárias, de no máximo 30 alunos, deverão dedicar uma hora diária à leitura e à escrita e outra à aritmética seguindo "métodos de ensino recomendados"; as classes não serão mais organizadas sob o critério de diversidade de habilidade, mas, ao contrário, sob o de semelhança; será estabelecido um alvo para cada escola e aquelas que não o alcançarem serão sumariamente fechadas ou reabertas sob intervenção das autoridades educacionais; a publicação de tabelas de desempenho das escolas dará continuidade à política de "nomear para envergonhar"; um processo de dispensa-relâmpago de "maus professores" será introduzido; até o ano 2002 (fim do atual governo) as 32 mil escolas do reino terão computadores, e o acesso à Internet será facultado a todos os alunos; o ensino universitário, até agora gratuito, passará a ser em parte custeado pelos estudantes com uma anuidade de mil libras esterlinas; todo o ensino pós-secundário -que atende alunos acima de 16 anos, quando finda a escolaridade obrigatória- receberá verba extra a fim atender 500 mil alunos a mais até o ano 2002.
Tão ambicioso programa não dispensa a mobilização da família e do setor privado da economia, que são instados a participar ativamente dessa cruzada nacional. Um contrato casa-escola (assinado!) exigirá que a família assuma responsabilidade pela disciplina dos alunos, pela frequência às aulas e pela realização de lições de casa compulsórias. Por outro lado, da indústria, comércio e escolas particulares se espera uma cooperação que vai muito além da cômoda doação em espécie.
Na que pretende ser "a maior parceria público/privado em educação de todo o mundo", firmas como Lloyd's e Marks & Spencer são estimuladas a dispensar funcionários para vários tipos de trabalhos comunitários. Quanto às seletas "public schools" (tal como são chamadas as escolas particulares britânicas, em oposição às realmente públicas "state schools"), espera-se que elas se disponham a compartilhar seus sofisticados recursos e instalações com as escolas do Estado.
Mas fazer com que as "public schools" -que fazem parte do melhor e mais elitista setor educacional privado do mundo- se imbuam de espírito público parece ser tarefa bem mais penosa e complexa. Afinal, os pais que chegam a pagar até 14 ou 15 mil libras por ano para que seus filhos adquiram (além de conhecimento) toda uma forma de falar e se comportar distintamente e façam contatos com as pessoas certas dificilmente verão com bons olhos a "promiscuidade" implícita nas propostas trabalhistas.
Impossível seria minimizar as realizações da administração Blair. Em primeiro lugar, a educação adquiriu uma importância aparentemente sem precedentes na política governamental, e os professores foram transformados no profissionais mais valorizados e requisitados da nação. Uma campanha para recrutar professores e elevar a moral da profissão está a todo vapor na mídia, e nos cinemas britânicos um comercial apresenta o próprio Tony Blair (dentre outras 17 figuras públicas) lembrando o público que "ninguém se esquece de um bom professor".
Uma verba adicional de mais de dois bilhões de libras foi destinada à melhoria das escolas. Contagiados pelo entusiasmo, dinamismo e simpatia de Blair, 35 firmas já canalizaram 120 de seus funcionários como mentores das escolas de um dos mais carentes distritos londrinos.
Educar é punir?
Todavia o frenesi de Blair e de sua equipe de reformadores tem atraído críticas de várias frentes. Seculares centros de excelência (e de privilégio!), como as universidades de Cambridge e Oxford, esperneiam diante da possibilidade de perderem a verba extra que financia o ensino individualizado ("tutorial"), sua marca de distinção e uma das razões de sua excelência. A política de "nomear para envergonhar", que humilha as escolas "ruins", é criticada como ineficaz e desumana. A retórica triunfalista e o tom arrogante e intolerante de muitas declarações governamentais inquietam simpatizantes do Partido Trabalhista.
É também deplorada a relutância das autoridades educacionais em considerar os estudos que questionam alguns aspectos centrais da reforma: de um lado, a validade de padrões absolutos em educação e a confiabilidade das avaliações; e, de outro, a crença de que excelência em educação e progresso podem ser atingidos sem um ataque frontal à pobreza.
Juventude e violência
Se a cruzada educacional do governo Blair tem seus excessos, estes talvez se devam à gravidade do problema a ser atacado. Para quem ambiciona fazer do país um lider mundial de excelência deve ser desesperador descobrir que sua juventude lidera a Europa em violência, uso de drogas e "comportamento irresponsável".
Pesquisas recentes apresentam, de fato, um quadro bastante assustador: o Reino Unido é a capital da droga na Europa e sua juventude lidera de longe o consumo das chamadas "drogas da dança" ("ecstasy" e anfetamina); em uma em cada dez escolas os alunos portam armas perigosas; professores de uma em cada cinco ou seis escolas levam chute, pontapé, empurrão ou cuspe de seus alunos; perto de 100 mil adolescentes ficam grávidas a cada ano; a população jovem sem moradia fixa, sem emprego e fora do sistema educacional está crescendo vertiginosamente; o suicídio entre jovens de 15 a 24 anos aumentou assustadoramente nos últimos 15 anos. E, para completar esse quadro tenebroso, no último World Competitiveness Report (Relatório da Competitividade Mundial) a educação britânica ocupou um vergonhoso 42º lugar.
O governo Blair declarou "tolerância zero" para com a violência e irresponsabilidade juvenis e anunciou uma tática de atuação preponderantemente punitiva: os pais, por exemplo, serão responsabilizados pelo comportamento dos filhos, o sistema judiciário será mais rígido e repressor para com os jovens, e até haverá imposição de toque de recolher. Com medidas como essas, o governo acredita que crime, cabulação de aula, desemprego e, "acima de tudo..., infelicidade" serão, finalmente, coisas do passado.
Resta saber se a cultura da irreverência e do desacato -marca tradicional da juventude britânica e que tem revolucionado a música e a moda e dado origem a movimentos como o dos punks e "skinheads"- poderá ser abalada pela investida do novo governo; especialmente se considerarmos como agravantes da rebeldia as incertezas e angústias que marcam a "sociedade de risco" (para usar a expressão de Anthony Giddens) deste final de século.
Se a "sociedade do trabalho" está com os dias contados (como acreditam muitos estudiosos) e se a massa da população juvenil carente é a primeira a ser atingida pelo que um dia atingirá a todos, uma educação com ênfase na disciplina e no desempenho acadêmico como garantia de um bom emprego parece estar em total descompasso com a realidade. O verdadeiro desafio da modernidade, alertam alguns educadores, é reformular a escola para que ela ajude a "abrir as portas para uma vida significativa" nessa nova sociedade que se anuncia.

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