São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 1997
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Dependência: da teoria à prática

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A revista "Estudos Avançados", do Instituto de Estudos Avançados da USP, lançada na semana passada, traz uma valiosa entrevista com o sociólogo José de Souza Martins, um dos expoentes do Departamento de Ciências Sociais daquela universidade. Para quem não sabe, Souza Martins, formado pela USP, foi aluno de Fernando Henrique Cardoso e acompanhou de perto a sua trajetória como intelectual desde os anos 60.
A entrevista lança luz sobre as origens intelectuais do atual presidente da República e em especial sobre a natureza e significado político da assim chamada Teoria da Dependência, para a qual FHC tanto contribuiu nos anos 60.
Souza Martins foi cuidadoso e delicado, mas disse tudo. O que emerge do seu depoimento é a constatação de que há mais continuidade do que ruptura na carreira de FHC. Ao contrário do que geralmente se crê, são muito significativos os pontos de contato entre Fernando Henrique sociólogo e Fernando Henrique político.
Para Martins, o trabalho de intelectuais como Fernando Henrique nos anos 60 resultou no amadurecimento da percepção de que o "imperialismo", para usar o jargão da época, sofrera transformações como sistema de dominação econômica e política e "abria espaços de parceria subalterna". Tornara-se "sócio compulsório" do desenvolvimento de países como o Brasil, aos quais oferecia "a alternativa de tornarem-se sócios menores". Fernando Henrique foi, segundo Martins, "um dos primeiros cientistas sociais a perceber a mudança que estava ocorrendo".
Martins não usa essa palavra, mas fica patente pelo seu relato que, já naquela altura, a atitude básica de FHC era de conformismo, disfarçada talvez pelo recurso constante à terminologia e às categorias marxistas.
A teoria da dependência, segundo esse depoimento, não era necessariamente uma perspectiva de esquerda. Tratava-se, basicamente, de uma "tentativa de ajustar o desenvolvimento do país a possibilidades reguladas fora dele, no plano internacional, pelos grandes conglomerados econômicos, pelos governos estrangeiros dos países ricos".
Nos anos 60, esclarece Martins, "a crítica à situação de dependência era uma crítica de esquerda, mas, ao mesmo tempo, era uma proposta de adesão estratégica". Desde aquela época, reinavam mal-entendidos. A esquerda, lembra ele, falava em dependência imaginando que estava falando de imperialismo, mas estava, na verdade, falando de outra coisa: do ajustamento da economia nacional à economia "globalizada".
Martins lembra ainda que, nos anos mais recentes, Fernando Henrique foi um dos primeiros brasileiros a falar em "globalização". Mas esclarece que não houve "direitização" quando se passou da "teoria da dependência" para a "teoria da globalização": "A lógica da globalização já estava lá naquelas preocupações de esquerda, claramente presentes nas idéias de Fernando Henrique".
Em suma, o posicionamento internacional do atual governo tem raízes mais fundas do que geralmente se imagina. Remonta às pesquisas e elocubrações de Fernando Henrique e de uma certa esquerda nos anos 60.
Em outras palavras: não há por que esquecer o que ele escreveu. Depurado da terminologia marxista ou quase-marxista em voga naqueles tempos, os textos de então dão um certo embasamento às opções e omissões de hoje.
Sei que tudo isso dá panos para manga. A literatura acadêmica sobre a chamada teoria da dependência é bastante ampla. Mas o que vale a pena frisar é que Fernando Henrique, já faz muito tempo, empenha-se com notável coerência em dar continuidade a uma tradição inexpugnável das elites brasileiras: o esforço para manter viva a chama do passado colonial, devidamente modificado, disfarçado e "modernizado".
Há quem sustente que, como presidente, FHC resolveu ir além e que o seu governo representa um aprofundamento do habitual entreguismo das elites tupiniquins. Não faltam argumentos em favor dessa tese. Afinal, em matéria de desnacionalização e entrega do patrimônio nacional, Fernando Henrique não mede esforços para superar as realizações de muitos de seus antecessores. E a sua política macroeconômica, em especial no campo cambial, deixou o país à mercê de grupos financeiros sem pátria e sem escrúpulos.
Escrevo estas linhas e já me ocorre a necessidade de fazer uma ressalva. Na atual quadra histórica, Fernando Henrique e o PSDB estão longe, muito longe de serem os únicos políticos dispostos a praticar, com afinco, a dependência. Não sendo filiado a partido algum, posso dizê-lo com tranquilidade.
Eis a verdade cruel: do PPB ao PT, todos os principais partidos babam, uns mais, outros menos, a baba elástica e bovina da humildade. Discursos eleitoreiros à parte, é o que se vê sempre que se trata de definir o posicionamento do Brasil no mundo. FHC desempenha o papel com mais convicção e amparado em longa reflexão acadêmica sobre a "teoria"' da dependência, mas não está só. E não é casual o seu sucesso de bilheteria com a plutocracia que manda no país.
Há alternativas? Sem dúvida. Precisamos encontrar outro rumo, pois enquanto economia satélite, submetida a decisões extranacionais, o Brasil não tem futuro. Volto ao tema no próximo artigo.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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