São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
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Os mitos conflitantes de Cervantes e Chaplin

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

A obra de Charles Chaplin não passa de um conjunto de filmes nos quais um mesmo personagem vive diferentes aventuras. É um ciclo de acontecimentos atravessados por um ser que se transforma e se desintegra ao grau de experiências vencidas.
O mito que ele, consciente ou inconscientemente, pretendeu criar, pelo contrário, é independente de qualquer relação física, transcende qualquer circunstância. É intemporal, universal. É um conceito, ou melhor, um conjunto de conceitos fixados, uma idéia encarnada. Ulisses, Prometeu, Édipo, Sísifo, Dom Quixote e Fausto não são personagens. São mitos.
Há que se diferenciar, a princípio, o mito de seu equivalente mais próximo, que é o fantoche, entidade que não chega a ser a negação do mito mas a sua escamoteação. Falstaff é fantoche, Hamlet é mito. Tom Jones é fantoche. Gulliver é mito. Na obra de Chaplin, os fantoches são os outros: o amor, a adversidade, a justiça. Fantoche é o instinto sexual: Mabel. Fantoche é a força bruta, a adversidade, o perigo: Big Bill. Fantoche é o restaurante, o frango: a fome. Diante de tantos e tão variados fantoches, a própria estrada do final de vários de seus filmes, um de seus temas recorrentes e emblemáticos, é um fantoche visual.
Pierre Leprohon observou que a figura de Carlitos não passa de um objeto animado. Mas dentro deste objeto animado existe uma idéia encarnada, funcionando como a dignidade consciente. A revolta, a agressividade pronta a estourar, são expressões e expansões dessa dignidade ameaçada. Ela se afirma em estado de rebelião constante, nascida da cólera de um indivíduo reduzido a objeto pela engrenagem, de um homem aviltado pela miséria.
Ele é egocêntrico e fenomenista: nele, o absoluto da realidade objetiva confunde-se com a relatividade da perspectiva subjetiva. E os fenômenos são ligados uns aos outros segundo relações emocionais sugeridas por imagens deformadas, em alguns casos, pelo delírio, em outros, pela leitura do elementar bom senso -o que ocorre na maioria das vezes.
Não há diferença entre o signo e a coisa significada, não há separação possível -ou necessária- entre o objetivo e o subjetivo porque a separação implica numa descentralização da consciência, movimento esse que não nega mas contraria a sua concepção egocêntrica do universo.
Há um sentimento mais trágico em Carlitos do que em Dom Quixote. Para aquele, não existem adversários transformados em moinhos. Carlitos nunca se ilude do significado das coisas. Jamais confundiria a bacia de barbeiro com o elmo de Mambrino. Seu quixotismo é mais trágico porque mais real: com o elmo verdadeiro faria o que deveria fazer, ou seja, barbear-se. Ele nunca duvida do que tem diante de si: apenas transforma e transcende a realidade, assimilando-a em seu universo particular e usufruindo-a na sua circunstância.
Para ele, os outros é que estão sendo iludidos: a ceguinha de "City Lights" acredita que o vagabundo é um milionário. Os grevistas de "Modern Times" pensam que a bandeira vermelha que ele empunha é a da revolução. Jim Mackay, em "The Gold Rush", alucinado de fome, vê seu companheiro de miséria transformar-se num frango. Os outros -nos filmes de Chaplin- é que são Quixotes. Nunca é ele.
Carlitos jamais atacaria um moinho de vento. Em compensação, Dom Quixote jamais comeria uma bota pensando que era um bife. Esfomeado, sem alternativa, Quixote veria na bota um bife ou um frango. Uma vez sentado à mesa, à primeira garfada, ao contato real com o gosto e contingência da bota, a visão se desfaria, e o Cavaleiro da Triste Figura daria um berro e culparia mais uma vez o feiticeiro Frestão de ter transformado o seu bife ou o seu frango numa bota. O quixotismo do homem da Mancha era apenas uma "cosa mentale" -uma espécie de arte, como queria Leonardo da Vinci. Seus sentidos, quando realmente solicitados, reagiam com naturalidade e a ilusão se desfazia.
Carlitos é trágico, nunca é cômico. Não duvida em nenhum instante que tem diante de si uma bota: sente-lhe o cheiro, a dureza. Nunca se ilude da realidade, do que verdadeiramente está vendo: uma bota no prato. Apesar disso, tempera-a com sal e pimenta, experimenta-a aos poucos, aprecia-a, faz espaguete dos cordões, chupa os pregos como se fossem ossos de uma galinha ou as espinhas de um peixe.
Repele a auto-sugestão, despreza a ilusão: tem mesmo de comer a bota, de assumir a bota. A fome e a miséria, juntas, tão reais quanto a bota, não lhe dão alternativa. Enquanto Quixote, mais uma vez indignado, imprecaria contra o feiticeiro que lhe arruinara o jantar, Carlitos aceita placidamente a realidade e a bota: palita os dentes, satisfeito. Desaperta o colete para facilitar a digestão, não a digestão do bife mas a digestão da bota.
Encara e supera a realidade sem se evadir de sua aspereza, sem procurar culpados e sem se julgar inocente. Não se perdoa nem se condena. A bota é uma bota. O homem é um homem.

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