São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Organizações sociais e estatização

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Em recente artigo, "Criar dificuldades para vender facilidades" (Folha, 21/11), procurei expor um vício cultural, talvez biológico, brasileiro. Mais que isso: um vício humano, talvez.
O curador de fundações e promotor Carlos Francisco Bandeira Lins interpretou minha diatribe como dirigida a ele e ao Ministério Público. Corrijo o mal-entendido, portanto. Reconheço o Ministério Público como principal barreira contra essa perversão e as fundações que representa o promotor como vítimas de um processo inelutável.
Mas há nessa discussão alguns pontos fundamentais, que precisam ser esclarecidos. O promotor condenara, em artigo anterior (Folha, 13/11), o fato de que bens públicos estariam sendo, por essa nova fórmula gerencial, entregues a interesses privados. E agora conclui que "a MP 1.591 é a estatização da sociedade". É certamente uma dialética ambivalente, para dizer o menos.
Ele reclama, se entendi bem, a existência de um organismo controlador-fiscalizador no seio do Executivo. Ora, como seria possível contratar terceiros para executar uma tarefa sem cobrança? Isso não é estatização, é senso comum. Ele parece acreditar que o Ministério Público está impedido de atuar sobre as organizações sociais.
Se fosse verdade, seria de fato um absurdo. Todavia pode atuar com, pelo menos, a mesma abrangência que no caso de uma S/A. Nada na MP proíbe o Ministério Público de intervir numa OS que tenha infringido a lei. Seria redundância constrangedora autorizar a promotoria a atuar onde já é sua obrigação intervir quando há irregularidades.
Mas a discussão encobre o que talvez seja o ponto crucial, a razão de ser dessa inovação gerencial. Para esclarecimento, usaremos uma analogia trivial. Mais comum que o futebol, usado pelo curador como exemplo, é a gripe.
Há dois tipos básicos desse mal. Denominamos gripes B as de atuação local, quase esporádicas. As do tipo A são responsáveis pelas epidemias que varrem o planeta periodicamente. Tomemos como exemplo estas últimas.
O que caracteriza o vírus A da gripe é sua variabilidade. O que muda no vírus é uma parte chamada antígeno. Quando um indivíduo é atacado por um vírus A, gera anticorpos específicos, capazes de atacar o vírus que reconhecem. E é o antígeno que lhes serve de carteira de identidade.
No ano seguinte, o vírus mudou seu antígeno, e aqueles anticorpos já não servem. Outros têm que ser elaborados. Felizmente, o sistema imunológico do homem é capaz, com frequência, de desvendar o novo vírus A e elaborar novos anticorpos rapidamente.
O legislador bem-intencionado cria entidades de que a sociedade necessita para operar eficientemente. Nelas, correntemente, já há mecanismos de defesa. Entretanto, é incalculável a versatilidade dos parasitas que atacam esses organismos. E alguma variedade acaba penetrando as barreiras originais.
A sociedade reage por seu representante legítimo, o Estado, criando novas defesas para cada nova variedade de parasita. Por algum tempo, a nova defesa é bem-sucedida, até que o parasita, como o vírus A da gripe, encontra uma nova estratégia. E o ciclo recomeça.
A vida é assim mesmo, e tudo estaria bem se o organismo em questão se livrasse das antigas defesas a cada mudança de antígeno de seu agressor. Mas as instituições até agora engendradas pela sociedade, como autarquias, fundações, estatais etc., a cada inovação do agressor, do parasita, agregam permanentemente uma nova defesa.
Essas defesas, úteis quando considerados os momentos de crise, tornam-se um peso insuportável se acumuladas e tornadas vitalícias, convertendo-se em verdadeiras moléstias. É assim que a burocracia se multiplica e se consolida.
Febre, dor de cabeça, tosse e corrimento nasal são defesas necessárias para expelir ou combater, num indivíduo infectado, um vírus ou uma bactéria trivial. Mas tornam o cidadão inútil se eternizadas. A fundação, quando concebida e regulamentada inicialmente, permitia grande flexibilidade gerencial. Hoje, após sucessivas reformas, já não difere da administração direta.
A vantagem da nova fórmula, constituída por uma organização social e um contrato de gestão, é que este último é necessariamente renovado a cada período, revisto e julgado, podendo remover anticorpos ultrapassados e incluir novos, que enfrentem dificuldades recém-identificadas.
Os contratos de gestão também se adaptam a diferentes atividades. A gestão de um hospital é muito diferente da de uma instituição de pesquisas e exige regulamentos diversos. Colocar ambas as instituições sob as mesmas legislações de licitação, recrutamento, avaliação etc. é uma grande insensatez.
As objeções ao contrato de gestão parecem derivar de uma visão ambivalente e confusa de Estado, que o vê, por um lado, satanizado, opressor, corrupto; por outro, provedor de um absoluto e santificado poder de fiscalização e de contenção. O bem-intencionado curador de fundações, que condena as OS como "estatização da sociedade", em confronto com as fundações que pretende representar, não percebe que é ele mesmo a personificação do Estado.
Não há exemplo mais claro na história recente de "estatização da sociedade" do que a inserção de uma "curadoria", ocupada por promotor público, representante do Ministério Público, "defensor das fundações", em realidade com direitos divinos -até de veto à concepção- sobre essas fundações, entidades ditas de direito privado.

Texto Anterior: Clonagem, bebês de proveta e Código Civil
Próximo Texto: Esclarecimento; Demissões voluntárias; Deputado ausente; Injustiça; Prêmio Esso; Em causa própria; Novos tempos; Vergonhão-97; Boas-Festas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.