São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Será que os "tigres" viraram vegetarianos?

ROBERTO CAMPOS

A presente crise asiática abriu um debate sobre a eficácia do seu modelo de desenvolvimento econômico, até agora considerado "milagroso". Esse modelo tem suscitado duas metáforas zoológicas. Uma delas sugere a agressividade dos "tigres", por abocanharem crescentes fatias do comércio mundial.
O "tigre" de primeira geração seria o próprio Japão, na década dos 60 (após o lançamento do Plano Ikeda, de duplicação da renda nacional). Os "tigres" de segunda geração seriam Hong Kong, Cingapura, Coréia e Taiwan, cujo deslanche espetacular se manifestou na década dos 80, a qual, melancolicamente, foi a "década perdida" para a América Latina. Os "tigres" de terceira geração -Tailândia, Malásia, Indonésia e as zonas costeiras da China comunista- são fenômenos um pouco mais recentes, desabrochando sobretudo na década de 90.
A evolução típica foi uma rápida escalada de industrialização, com ênfase exportadora, à medida que os países emigravam das manufaturas rudimentares -tecidos e confecções, por exemplo- para atividades de maior intensidade tecnológica, como maquinaria e eletrônica. O economista japonês Kaname Akamatsu cunhou uma outra metáfora -a dos "gansos voadores". O Japão teria sido o líder da formação de gansos, sendo o primeiro a decolar, seguido pelas cidades-entrepostos (Hong Kong e Cingapura) e pelos países médios (Coréia e Taiwan), engrossando-se o vôo nesta década com os países do sudeste da Ásia e com as "zonas especiais" da China.
Zoologia à parte, o fato é que todos esses países adotaram instituições "capitalistas" de mercado, abstendo-se de contaminações socialistas. Isso não os transforma em economias neoliberais, pois é elevado o grau de dirigismo, nem em democracias liberais, pois o individualismo democrático é coarctado por vários graus de "autoritarismo confuciano".
Na peripécia do desenvolvimento, há duas tarefas diferentes: a do "grande salto adiante" e a do "desenvolvimento sustentado". Até a crise recente, os "tigres" pareciam ter resolvido ambos os problemas. Hoje se sabe que ainda não dominaram a tecnologia do "desenvolvimento sustentado".
A montagem do "salto adiante" é certamente mais fácil, como o demonstra o exemplo brasileiro. Neste pós-guerra, experimentamos dois saltos. No governo Kubitschek, com o "Plano de Metas" (50 anos em 5) demos um salto tecnológico e industrial. Mas faltava-nos embasamento financeiro, desperdiçamos dinheiro na construção de Brasília e surgiram impasses cambiais.
Em 1961, chegávamos à bancarrota. No período 1968-1973, houve o chamado "milagre brasileiro", com diversificação industrial e um salto exportador, após as reformas institucionais promovidas no governo Castello Branco. Mas não soubemos nos ajustar às duas crises de petróleo da década de 70. E na "década perdida" dos 80 desfiamos uma ladainha de erros, que nos conduziram a prolongada estagnação.
Outros países ensaiaram saltos, sendo esse exercício atlético particularmente frequente em governos autoritários, propensos a sobreestimar sua capacidade de mobilizar recursos compulsoriamente. Um exemplo foi o salto de industrialização stalinista no imediato pós-guerra, que persistiu ao longo da década de 50, possibilitando no início dos 60 a fanfarronice de Kruschov de que a União Soviética superaria o PIB americano pelas alturas de 1980, marcando o funeral do capitalismo.
Na China comunista, o "grande salto avante" de Mao Tse-tung, na década de 50, e da desastrosa "revolução cultural" dos 60 foram exemplos de descompasso entre o atletismo dos saltos frustrados e a marcha batida do desenvolvimento sustentado.
Historicamente podem-se distinguir três métodos de arrancada: o do "big push" (grande empuxe), o da "industrialização substitutiva de importações" e o da "plataforma de exportação". O primeiro foi conceituado por economistas ocidentais nos anos 50, mas só praticado nos planos russos e chineses, cujos governos podiam mobilizar recursos humanos, materiais e financeiros de forma ditatorial.
O segundo, enfatizando o protecionismo às indústrias nascentes, foi praticado em diferentes graus e estágios nos Estados Unidos e Europa, mas atingiu proporções exageradas na América Latina, resultando em indústrias pequenas e ineficientes, altamente protegidas.
O terceiro modelo, razoavelmente bem-sucedido, foi o asiático, em que países pequenos se transformaram em plataformas de exportação, capacitando seus mercados para reduzir custos e atrair investimentos.
Como faz notar o economista de Harvard Jeffrey Sachs, as instituições paradigmáticas desses modelos são diferentes. No caso do "big push", o ator tende a ser o governo; no da substituição de importações, a empresa mista ou o "empresário protegido"; no modelo asiático, é a empresa exportadora integrada no comércio mundial.
O desfalecimento dos "tigres asiáticos", com as sucessivas crises de que foram epicentros Tailândia, Hong Kong e Coréia do Sul, reabriu controvérsias sobre o "milagre asiático". Desde 1994, o economista Paul Krugman vinha falando no "mito do milagre asiático". O crescimento, aparentemente espetacular, era baseado principalmente na concentração de maciços investimentos e na incorporação de contingentes baratos de força de trabalho, e não num crescimento da produtividade.
Por isso, o ritmo do crescimento não seria sustentável se diminuísse a liquidez internacional e se houvesse alta de custos salariais. Assim, o crescimento asiático apenas reproduziria outros falsos milagres, como o desenvolvimento stalinista, caracterizado pela aplicação ineficiente de recursos concentrados.
Outros economistas, como Jeffrey Sachs, questionam essa visão pessimista. A orientação exportadora dos asiáticos teria tido o efeito de sancionar a influência do mercado na alocação de investimentos, ao contrário da alocação puramente burocrática de recursos na experiência soviética.
As realizações asiáticas não devem ser subestimadas. Superaram a América Latina na redução da pobreza, na diminuição das desigualdades de renda, na escolaridade da mão-de-obra, na velocidade da absorção de tecnologia e na eficiência exportadora. No período 1965-1995, a renda por habitante cresceu sete vezes nos quatro "tigres" e quatro vezes no sudeste da Ásia.
Curiosamente, um dos aspectos do modelo asiático mais elogiados por nossos economistas é precisamente o mais questionável: o dirigismo da política industrial. Parte da crise atual resultou precisamente do direcionamento de crédito bancário barato, pelo "burocrata esclarecido", para grupos e indústrias tidas como alavancadoras do crescimento. Além da megalomania industrial, houve uma enorme especulação imobiliária num sistema bancário frouxo na avaliação de riscos.
Percebe-se hoje, mais nitidamente que antes, que esses países desenvolveram um tipo especial de capitalismo: o que os americanos chamam de "crony capitalism", ou seja, o capitalismo dos "cupinchas", revelando a influência de critérios político-burocráticos nas decisões de investimento. A lição a aprender é que não basta uma alta taxa de poupança. Na economia norte-americana, a poupança é baixa, mas critérios rigorosos de mercado tornam eficientes os investimentos.
Havia até recentemente uma excessiva empáfia dos asiáticos quanto à superioridade dos "valores asiáticos" de solidariedade grupal, comparativamente ao individualismo ocidental. Hoje se verifica que o déficit democrático inerente ao autoritarismo confuciano tem um insuspeitado poder de distorção. Os "tigres" estarão condenados por algum tempo a uma dieta vegetariana...

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