São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Eles preferem Natal longe da família

ADRIANA VIEIRA e ISABELA MOI

ADRIANA VIEIRA; ISABELA MOI
DA REVISTA DA FOLHA

Durante toda a infância, o produtor cultural André Blumenschein, 31, passava boa parte da noite de Natal no banheiro. Vomitando. A ansiedade da véspera, aliada à imagem daquele "monte de comida" e de "parentes se beijando", dava-lhe náuseas.
Nem os presentes o consolavam: quando recebia o seu, abria o berreiro. "Não eram algumas lágrimas, era choro mesmo. Na verdade, até hoje choro quando ganho alguma coisa", conta André.
Quando completou 16 anos, decidiu que chegava de sofrimento, "declarou independência" e começou a passar o Natal com os amigos. "Fazemos um jantar. Chamamos essa noite de 'Natal dos Excluídos'."
André não é exceção. Para muita gente, enfrentar a família no final do ano é um tipo de tortura. Vivendo em núcleos cada vez menores -a família média paulistana hoje tem apenas 3,7 pessoas-, acaba-se tendo pouco contato com primos, tios e sobrinhos. Na hora do Natal, encontrar essa gente vira um problema. "Sem muito assunto em comum para conversar, a atração da noite era a TV."
Márcia Maria Marques, 27, desenhista, é outra "rebelde de Natal". Na véspera, ela arruma as malas e viaja para algum lugar bem longe dos parentes. Na próxima quarta-feira, ela vai com quatro amigas para uma praia no litoral norte de São Paulo. "Às vezes, os amigos são mais família que os nossos próprios parentes", diz.
Márcia acha que a festa é um "fingimento". "As famílias brigam o ano inteiro ou nem se vêem e, no dia de Natal, resolvem trocar presentes. É muito engraçado, pois no dia seguinte está todo mundo falando mal um do outro e reclamando dos presentes."
O psiquiatra e terapeuta de família Antonio Mourão, 49, afirma que a saída para evitar traumas natalinos é cultivar o sentimento familiar durante o ano. "Se a relação for puramente formal, a festa será artificial", afirma.
Mourão acha que o Natal deveria romper com a nostalgia e acompanhar os tempos e as novas relações. "A comemoração deve ser adaptada à vida da pessoa hoje, à família atual, que pode ser formada apenas pelos amigos", afirma.
A socialite Carmen Mayrink Veiga, que reúne a família todo ano nessa data, concorda. "Natal é uma festa de família, mas acho que é uma hipocrisia pessoas que não se vêem durante o ano se juntarem só nessa época."
No seu livro de etiqueta ("A B Carmen", Editora Globo), lançado há dez dias, ela aconselha aos que detestam Natal sair da cidade ou ficar sem estragar a festa dos outros. "Vale até tomar um antidepressivo, mas tem de estar bonito, arrumado e com presentinho embaixo do braço. Ninguém tem culpa por seu mau humor."
Além dos presentes, diz a tradição que Natal é época de mesa farta e de árvore enfeitada. Para os "rebeldes", o estresse de tanta arrumação não vale a pena.
O arquiteto Leonardo Junqueira, 31, acredita que Natal é uma festa dominada por obrigações: "Tem de comprar presente para todo mundo, a maioria de última hora; tem de ser simpático, mesmo com aquele primo que você não vê há anos; tem de comer que nem um desgraçado, senão a mãe vai achar que a comida estava ruim e, no final, tem de aguentar aquela programação horrível na televisão".
Mesmo assim, Leonardo passa todos os dias 24 e 25 de dezembro com a família. "Por causa da minha mãe, que dá muita importância à tradição". A festa reúne cerca de 15 pessoas e é sempre tradicional.
"Natal, para mim, é o momento de lavação de roupa suja, quando se fica sabendo de doenças, separações, brigas...".
Apesar de namorar há três anos, ele e a namorada comemoram separados, cada um com a sua família. "Depois de casarmos, o Natal provavelmente será um problema ainda maior", prevê.
O arquiteto lembra do estresse que seu irmão, casado, passa nesse dia. Eles visitam primeiro a festa da família dela e depois correm para chegar antes da meia-noite, para evitar que a mãe dele fique chateada. Sua maior expectativa é a chegada do dia 26, quando fica livre dos compromissos familiares e pode viajar.
"Fizemos pesquisas e descobrimos que o estereótipo de Natal em grandes famílias não corresponde mais à realidade. As pessoas se reúnem em grupos cada vez menores. Quisemos mostrar que é ótimo passar Natal em família, mas que a família pode ser de dois", diz João Paulo Paes, 40, diretor de atendimento da agência Paim Lautert Macedo.
Quando não um par romântico, a saída pode ser o "antes só do que mal acompanhada". Órfã e criada pelos avós, a analista de sistemas Adriana Guiraldelli, 29, não gosta de Natal, porque se sente deslocada na casa dos parentes. No ano passado, fez sua última tentativa de festejar com tios e primos. "Foi horrível, eu não fazia parte. Nunca mais. É melhor ficar sozinha."
Solteira, Adriana vai passar o Natal em casa, sem festa nem convidados, mas, "numa boa".
Para evitar melancolias, os psicólogos lembram que hoje há várias formas de organização familiar e não apenas a convencional fórmula mãe-pai-filho.
"Pessoas solteiras, descasadas e os filhos são também família", afirma a psicóloga Maria Tereza Maldonado, 48, especializada em terapia familiar.
O organizador de festas Ronaldo Araujo Resende, 30, não passa a noite de Natal com sua família desde os 19 anos.
"Trabalho ou viajo com amigos. Sou o único dos meus irmãos que não comemora com meus pais, apesar de gostar muito da minha família."
Mesmo quando trabalha no dia, ele nunca participa das festas. Já aconteceu de preparar a ceia natalina para os participantes de um cruzeiro, mas, na hora de festejar, ir para a cabine dormir.
Ronaldo acha que esse é um período rodeado de consumismo. "A obrigação de ter uma mesa cheia muitas vezes não combina com a realidade do ano inteiro. E essa coisa de neve? Nossa história é outra, estamos num país tropical! O Natal é forçado, uma ilusão."
Neste ano, Ronaldo vai viajar com quatro amigos para São Tomé das Letras, no interior de Minas Gerais. Alugaram uma casa, programaram acender uma fogueira no quintal e fazer um jantar simples para "comemorar o nascimento de Cristo". "É um momento de reflexão", afirma.
Apesar de adorar o Natal, a secretária Fernanda do Canto, 32, admite que a data pode gerar dores de cabeça. Todo ano, ela comemora a festa com a família em Porto Alegre e sempre voa no dia 23.
"No ano passado, foi um horror. Ninguém tem coragem de despachar a bagagem por medo de chegar sem presentes ou que eles acabem estragados. Por isso, o avião fica abarrotado de pacotes pelo chão e no colo dos passageiros."
Fernanda lembra que a companhia aérea em que viajava resolveu dar um panetone de lembrança para cada um no ano passado.
"Nem as aeromoças conseguiam passar com o carrinho de comida. Por isso, já estou preparando meu espírito para a semana que vem."
A secretária lembra, dos tempos de infância, das festas com 50 pessoas, "fora amigos e namorados que sempre apareciam".
"Meu avô comprava dois perus vivos e as crianças, umas 20, ficavam brincando com eles, enquanto o cozinheiro contratado embebedava os animais com cachaça", conta.
Transpor os obstáculos, "engolir alguns sapos" e aproveitar a festa de Natal com a família, porém, pode ser sinal de maturidade.
Para Maria Tereza, embora haja muita hipocrisia, o fato de reunir os parentes em uma festa significa ter "esperança de manter um mínimo de ligação, um vínculo de base emocional e origem entre as pessoas da família". "É melhor o mínimo do que nada."

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