São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Desvalorizações: benignas e malignas

LUCIANO COUTINHO

Os governos e autoridades monetárias dos países desenvolvidos e o FMI foram no mínimo imprudentes, para não dizer temerários e irresponsáveis, no tratamento dado à Coréia. Talvez, para quebrar as resistências coreanas à plena adoção das receitas liberais-ortodoxas, deixaram a corda esticar demais, a ponto de ameaçar ruptura.
Com efeito, o programa de suporte do FMI chegou tarde e em prestações insuficientes. Com reservas debilitadas, o Banco Central da Coréia apelou para antecipações de desembolsos que não vieram e, impotente, deixou o mercado provocar uma perigosa maxidesvalorização do won (cerca de 50% até o momento, considerada a cotação pré-crise de Hong Kong).
O sistema financeiro internacional viveu e ainda vive, por isso, dias de alto risco. Um default geral de pagamentos externos por parte da Coréia poderia ter provocado um choque financeiro de grandes proporções, afetando em cheio os bancos dos países desenvolvidos e, em especial, os combalidos bancos japoneses. Seria o caos. Alguns economistas atentos, como C. Fred Bergsten (ex-subsecretário do Tesouro dos EUA), chegaram a sugerir a decretação de uma moratória organizada para prevenir reações de pânico.
Os riscos de um desarranjo permanecerão elevados (e.g. novo ataque especulativo ao dólar de Hong Kong) até que o novo governo coreano, recém-eleito, consiga restaurar um mínimo de confiança e de ordem na economia. A tarefa não será fácil. Poucas vezes um programa do tipo-FMI parece tão inadequado e contraproducente quanto no caso da Coréia. De saída, uma redução significativa do crescimento do PIB tende a agravar perigosamente o nível de insolvências para com o setor bancário, em um sistema empresarial altamente alavancado, em que a relação debt/equity é de 4 para 1. Além disso, deve-se esperar uma séria resistência empresarial às propostas de franca abertura ao capital estrangeiro e de adoção do chamado modelo financeiro "anglo-saxão".
A crise coreana, em 1998, será certamente amarga e profunda, pois a maxidesvalorização causará sérios estragos nos grupos e bancos endividados em moeda estrangeira, mas a economia poderá emergir dela com rapidez, por força de uma posição competitiva privilegiada pela forte subvalorização da sua taxa de câmbio.
Estudo recente do BIS -Bank for International Settlements*- mostrou que as desvalorizações cambiais asiáticas nos anos 80 e 90 foram em geral benignas: causaram pequeno impacto inflacionário e estimularam o crescimento econômico, com significativa resposta das exportações. Os fatores explicativos alinhados pelos BIS foram: a) déficit público pequeno ou nulo; b) tradição de inflação baixa, com inexistência de mecanismos de indexação; c) percepção pelos agentes econômicos de que a desvalorização não impingia apenas perdas a curto prazo, mas oferecia novas oportunidades de exportação e de crescimento sustentável do PIB, a médio prazo.
É importante sublinhar que o nível relativamente baixo de endividamento externo (em contraposição ao alto endividamento de fontes internas) favoreceu essa reação benigna por parte das economias asiáticas. Na primeira metade dos anos 90, porém, algumas economias asiáticas (não todas), capturadas pela sedução dos capitais fáceis, incorreram em crescentes déficits em conta corrente e se aproximaram do padrão latino-americano. É, por isso, provável que a atual rodada de desvalorizações não venha se demonstrar tão eficiente como no passado.
Nas condições da América Latina, segundo o BIS, as desvalorizações funcionaram de forma maligna e contraproducente: as finanças públicas foram erodidas, a indexação se aprofundou, aguçou-se a espiral inflacionária. É evidente que as exportações também reagiram, mas em contextos de estagnação dos mercados internos. Não é preciso dizer que o ponderável endividamento externo dos países latino-americanos contribuiu de forma crítica para essa reação desfavorável.
Prisioneira de uma taxa de câmbio ainda mais sobrevalorizada pelos eventos recentes, a atual política econômica brasileira precisa encontrar novas opções para poder conciliar crescimento da economia e sustentabilidade do balanço de pagamentos. Uma alternativa -conservadora- é tentar seguir a trajetória atual de desvalorização homeopática, que requer redução dos salários e dos preços dos "non-tradeables", para melhorar a taxa de câmbio. Essa alternativa, além de socialmente indesejável, não parece ser viável e eficaz hoje, dada a pronunciada desvalorização relativa de todas as moedas asiáticas (exceção, ainda, de Hong Kong).
A outra opção seria a de construir condições para que uma desvalorização da taxa de câmbio possa vir a ser efetuada mais adiante de forma organizada e benigna. Isso exigiria: 1) expeditar a redução do déficit público; 2) impedir qualquer retomada de práticas de indexação; 3) atenuar os impactos financeiros da desvalorização; 4) articular políticas consistentes de exportação e de substituição competitiva de importações.
Embora contenha riscos, essa parece ser uma saída construtiva. Mas, para isso, é indispensável que a sociedade e os agentes econômicos percebam que, mais além dos prejuízos de curto prazo, uma desvalorização ordenada permitiria colher o bônus do crescimento rápido, com juros baixos e criação de empregos.

(*) "Some Multi-Country Evidence on the Effects of Real Exchange Eates on Output" por Steven B. Kamin e Marc Klau, setembro de 1997.

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