São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 1997
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"Vidas Secas" é teorema da escassez

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao contrário de tantos filmes do cinema novo, "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos, cresce a cada revisão. Sumido das locadoras há anos, é relançado em boa hora pela Sagres/Riofilme.
Tudo é belo, intenso e essencial em "Vidas Secas". Da concentração da narrativa, que se atém estritamente aos episódios narrados no romance de Graciliano Ramos, ao despojamento dramático e cenográfico, tudo obedece à idéia básica de muita secura e pouca vida.
A história é conhecida: dois anos na vida de uma família de sertanejos -Fabiano (Atila Iório), sua mulher Vitória (Maria Ribeiro), os dois filhos pequenos e a cachorra Baleia.
Eles fogem da seca, Fabiano trabalha de vaqueiro para um coronel (Jofre Soares), vem outra seca, eles andam de novo.
Dessa trama rala, Graciliano Ramos forjou o tratado definitivo sobre a miséria física e existencial do homem do sertão. Nelson Pereira dos Santos foi na sua cola.
Já a primeira cena configura toda uma estética e uma ética. A família caminha em silêncio, cansada, com fome e sede. Eles param para descansar e comer farinha. De repente, Dona Vitória pega o papagaio de estimação e o estrangula. Depois se justifica, na primeira fala do filme: "Não servia para nada, mesmo. Nem falar ele sabia".
Daí em diante, o filme se desenvolve como um ensaio implacável, em que nada é supérfluo ou decorativo.
Cada imagem, palavra ou movimento de câmera tem um sentido na construção de um teorema cruel, em que todo impulso afetivo é abortado pela lógica da escassez material.
Pode-se ver o filme pelo ângulo de suas sequências memoráveis: a morte de Baleia, o encontro entre Fabiano e o soldado amarelo, o monólogo do filho sobre o inferno.
Pode-se fazer uma tese sobre a importância simbólica do couro no filme: a roupa de couro que veste Fabiano e lhe dá uma identidade, a cama de couro que é o horizonte de felicidade de Dona Vitória, o chicote que castiga, os sapatos que apertam.
As festas, a religião, o comércio, o afeto, a consciência, a moral, tudo parece em esboço em "Vidas Secas", como se se tratasse de um mundo em estado de rascunho.
Muito se disse e escreveu sobre esse filme, mas sempre vale a pena ressaltar a coragem criativa de Nelson Pereira dos Santos.
A excepcional fotografia do filme, com a célebre "luz estourada" que transforma a tela num branco ardente em torno dos personagens, resulta de uma decisão ousada do cineasta.
Ele escolheu como diretor de fotografia o então repórter fotográfico Luiz Carlos Barreto, que nunca havia feito cinema, mas cujo estilo cru e sem filtros era o que o diretor queria.
Para dois papéis importantes -o de Dona Vitória e o do dono do gado- Nelson apostou em dois estreantes: Maria Ribeiro, funcionária do laboratório Líder, e Jofre Soares, ex-marinheiro e artista de circo, que se tornaria um dos maiores e mais requisitados atores do cinema brasileiro.
As filmagens foram realizadas na região de Palmeira dos Índios (AL), terra de Graciliano, que, se tremeu no túmulo, foi de contentamento.

Filme: Vidas Secas
Produção: Brasil, 1963, 103 min
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Com: Atila Iório, Maria Ribeiro, Jofre Soares
Lançamento: Sagres/Riofilme (021/253-4750)

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