São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Ser mulher faz mal à saúde

LÚCIA CRISTINA DE BARROS

Tristes tempos. Evite ser mulher! É o que dizem as autoridades à imprensa, sem essas palavras, mas com outras tão eficientes quanto. Nenhuma surpresa. Nos casos de violência contra a mulher, é de praxe nas sociedades patriarcais transformar a vítima em réu.
As mulheres que vivem em São Paulo são instadas pela polícia a não sair de casa após as 20h. As mulheres que pagam os impostos que mantêm serviços essenciais, como o policiamento, são avisadas de que estão ao deus-dará. E aquelas que insistem em se comportar como cidadãs de um país onde igualdade e liberdade de ir e vir são garantidas por lei "não entendem a gravidade da situação".
Nós, mulheres, entendemos, sim, a gravidade da situação, assim como todos os homens que amam alguma mulher. Saímos às ruas mortas de medo, vigiando o inimigo, que está por todos os lados. Algumas se disfarçam de homem, com cabelo preso e boné. Ridículo, se não fosse acintoso.
Algum policial ou governante ousaria sugerir que os homens deixassem de ir às ruas? Queremos que a polícia cumpra seu papel e proteja os cidadãos; não que faça recomendações impossíveis.
As mulheres conquistaram, a duras penas, o direito de sair sozinhas para trabalhar ou se divertir. Voltamos para trás a passos largos. Qualquer semelhança com regimes como o da Arábia Saudita não é mera coincidência. Segundo o raciocínio das autoridades policiais, seria uma solução perfeita.
Essa lógica torta deve ser aplaudida pelos marginais. Livramos nossas ruas dos cidadãos honestos, para que sejam controladas por quem não conhece limites.
A não ser que a sociedade faça algo. Está aí o exemplo de Nova York, que reduziu a criminalidade. Há outros. E, se não queremos importar soluções, apresentemos pelo menos alguma alternativa nossa. Não dá mais para esperar.
Para as vítimas da gangue da batida, já é tarde demais. Essas mulheres foram humilhadas, perderam sua alegria de viver num encontro diabólico com um bando que entendeu muito bem a situação de São Paulo. Aqui, a segurança passou a ser assunto de cada um porque não há mais aparelhos de Estado para garanti-la. O crime é cometido e não há punição.
Onde estão o prefeito e seus secretários, o governador e os dele, o presidente e seus ministros? Talvez preparando uma campanha do tipo "o Ministério da Saúde adverte: ser mulher faz mal à saúde".
Ou será que o recado da mais importante cidade do país para mais da metade da população brasileira (as mulheres já somam mais de 51% dessa população) não merece a atenção das autoridades?

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