São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 1997
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Viúva descreve últimos anos de Prestes

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Luiz Carlos Prestes (1898-1990) estaria completando 100 anos no próximo dia 3. Foi um dos poucos personagens que entraram para a história por mais de uma porta.
Primeiro, como chefe da coluna tenentista que levou seu nome (1925-1929). Ele procurou inutilmente levar o Exército a sublevar-se contra a República Velha, ao marchar 25.000 km pelo interior do país.
A seguir como chefe do Partido Comunista (1934-1980), pelo qual liderou em 1935 uma fracassada rebelião, a Intentona. Foi senador, comandou a mais forte máquina sindical pré-1964, viveu no exílio e foi excluído do PCB em 1980.
Sua segunda mulher, Maria Prestes, 67, nasceu com o nome de Altamira Rodrigues Sobral. Passou a se chamar Maria do Carmo Ribeiro para se proteger da polícia, ao acompanhar o marido nos anos de clandestinidade.
É a mãe de sete de seus oito filhos. Ela relata à Folha a rotina dos últimos anos de um octogenário que viveu o bastante para assistir o desmoronamento do mesmo comunismo pelo qual se bateu.
*
Folha - Como Prestes se adaptou à não-clandestinidade, quando voltou com a Lei da Anistia?
Maria Prestes - Já havíamos vivido um período assim, entre o governo Kubitschek e o golpe de 64. Naquela época, ele até me visitou na maternidade quando dois de nossos filhos nasceram.
Folha - Ele reagiu mal à contestação de sua liderança no PCB?
Maria - Já havia divergências sérias no partido. Ele ficou mais isolado. Ele queria ficar estudando a nossa realidade.
Folha - Como era seu cotidiano?
Maria - Moramos primeiro perto do Arpoador. Depois mudamos para um apartamento que havia sido do João Saldanha, no Leblon. E em seguida fomos morar na Gávea. Nos tempos do Leblon e da Gávea, sempre fazíamos longos passeios a pé, de manhã ou de tarde, por 40 minutos, uma hora.
Folha - Ele era reconhecido?
Maria - No Leblon, ele era reconhecido com frequência e nos paravam muito na rua para conversar. Na época da Gávea, íamos andar em São Conrado, que era mais tranquilo.
Folha - Nunca chegou a cruzar um adversário do comunismo que fosse indelicado com ele?
Maria - Isso nunca aconteceu. Pelo contrário. Sempre eram pessoas que sorriam.
Folha - Como foi a noite em que ele voltou para casa excluído do Comitê Central? Ele ficou muito abatido, cabisbaixo?
Maria - Essa separação já havia ocorrido em Paris, em 1979. Ele permanecia como secretário-geral porque o partido não o expulsou. Foi ele quem tomou a decisão de se afastar dos companheiros.
Folha - Ele não se deprimiu nem quando Giocondo Dias o substituiu como secretário-geral?
Maria - Não ficou magoado, não. Ele dizia que vivíamos numa democracia e que a maioria deveria dar os rumos ao partido. Ele só repetia: "Eu não participarei".
Folha - Mas a partir de então a rotina dele mudou.
Maria - O Prestes já era um homem escolado pela vida. Não era a primeira vez em que ele ficava em minoria. Já na época da coluna isso havia acontecido. Ele era um homem realista.
Folha - Nos últimos anos, ele chegou a dizer que sentia saudades da Rússia, que queria rever Moscou?
Maria - Vivemos dez anos em Moscou. Foi um período muito feliz para a família.
Folha - Ele tinha saudades do apartamento ou da comida de lá?
Maria - Todos nós sentimos saudades dos lugares em que fomos felizes. Ele voltou comigo uma vez a Moscou, em 1984. A vida cultural que tínhamos por lá era muito intensa.
Folha - Prestes falava russo com muito sotaque?
Maria - Ele só falava algumas palavras do russo. Ele gostava de falar francês.
Folha - Ele pedia para a sra. fazer no Rio algum prato que ele gostava de comer na Rússia?
Maria - Ele adorava a sopa de beterraba, o borsh, e estrogonofe.
Folha - O estrogonofe feito no Brasil não é parecido com o russo?
Maria - Não, não é. A carne é diferente. E aqui precisamos colocar o creme de leite em conserva. O de lá é o creme de leite fresco. Ele também gostava muito das tortas. Havia uma torta de Kiev com suspiro que ele adorava.
Folha - Quando morava por lá, ele sentia saudades de doce de leite, rapadura, goiabada?
Maria - Lá, comíamos comida brasileira. Eu é quem fazia. Ele gostava muito de ambrosia. Ele gostava de goiabada com queijo. Todas as vezes que alguém nos visitava ele pedia de presente uma lata de goiabada.
Folha - Ele ajudava a sra. a tomar conta das crianças?
Maria - Ele adorava os filhos e os netos. Muitas vezes voltava para casa com balas de chocolate para todos. Ajudava a trocar a fralda dos pequenininhos, dava comida na boca, fazia mamadeira. Gostava de fazer biscoito para as crianças.
Folha - Ele tinha alguma "especialidade" na cozinha?
Maria - Ele adorava fazer salada de frutas. Em Moscou, ele ficava na fila para comprar abacaxi e banana para reparar a sobremesa.
Folha - A sra. disse que ele lia em francês. Do que ele gostava?
Maria - Ele lia os romances clássicos, Balzac, La Fontaine. Mas também Gramsci, em tradução francesa. Lia também em português. Gostava de Machado de Assis, Castro Alves, Graciliano Ramos e dos primeiros romances do Jorge Amado.
Folha - Jorge Amado chegou a frequentar sua casa no Rio?
Maria - Não. Aqui, no Rio, ele nunca veio.
Folha - Como era a vaidade de Prestes ao se vestir?
Maria - Ele foi sempre um homem muito simples. Quando ganhava uma camisa no aniversário, dizia: "Não tenho tempo para gastar tanta roupa, não". Ele gostava de ter um terno bom. Mas ele se preocupava mesmo era com um bom par de sapatos. Quando íamos viajar, ele sempre engraxava os sapatos no aeroporto.
Folha - Quando o comunismo acabou na Europa, Prestes ainda estava vivo e assistiu muita coisa pela televisão. Como ele reagiu?
Maria - Ele assistiu pela televisão o julgamento do (Nicolae) Ceausescu (ditador romeno de 1965 a 1989). Comentou comigo: "A crise é mais grave do que eu imaginava". O que mais o abalou foi a Alemanha (então Oriental). Tinha muita afinidade com dirigentes como o Honecker.
Folha - O que o abalou?
Maria - Foram as notícias de que Honecker estava envolvido com dinheiro depositado fora do país. Ele ficou muito chocado. O Ceausescu nós conhecíamos.
Folha - No caso da Rússia a surpresa foi menor?
Maria - O velho sabia que haveria mudanças. Ele gostava do (Mikhail) Gorbatchov (último líder soviético). Havia uma abertura para os problemas internos do país. Mas houve precipitação.
Folha - O que ele disse sobre a queda do Muro de Berlim?
Maria - Ele disse mais ou menos o seguinte: "Eu não sei o que vai acontecer. Mas é lamentável que tudo isso tenha acontecido dessa maneira".
Folha - Voltemos para o fim da vida dele no Brasil. Houve um período em que ele tentou se aproximar do PT, mas o PT o rejeitou.
Maria - Não foi bem assim. Muitos dos que fundaram o PT tinham sido comunistas. O velho achava que o PT poderia ser um grande partido, mas que não tinha quadros que estudassem a realidade brasileira.
Folha - O que ele achava do Lula?
Maria - Para ele, o Lula era um quadro excelente, que tinha prestígio. Mas o velho lamentava muito porque ele não estudava. O Lula, o velho dizia, não passava nunca das primeiras 17 páginas de um livro. Até hoje o Lula tem raiva do Prestes por causa dessas críticas.
Folha - Raiva?
Maria - Nós o convidamos para dar um depoimento no filme "O Velho", e ele se negou. Eu sou admiradora do Lula. Mas acho que ele tem de romper um pouco com esse sectarismo.
Folha - Nas eleições de 1989, por que Prestes fez a campanha de Leonel Brizola, e não a de Roberto Freire, o candidato do ex-PCB?
Maria - O velho estava indiferente. Já estava fora do partido.
Folha - Nos últimos meses de vida, Prestes assistia à TV?
Maria - Assistia. Ele não perdia os telejornais, debates, programas de entrevista. Era um homem que lia sete jornais por dia, lia as revistas. Recebia e respondia muita correspondência.
Folha - Para a sra., pesou o fato de ter sido a mulher de Prestes depois de Olga Benario?
Maria - Tudo aconteceu com muita naturalidade.
Folha - Por que a sra. nunca foi casada no papel com Prestes?
Maria - Até que nos últimos anos ele queria, para legalizarmos a situação, por causa das crianças. Mas eu nunca quis.
Folha - Ele voltou a acreditar em Deus no fim da vida?
Maria - Não. Ele dizia que "acreditar em Deus é uma hipótese desnecessária".

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