São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Obra lê o cinema dos acontecimentos reais

AMIR LABAKI

da Equipe de Articulistas
"Permitir ao menos ler sobre os filmes que não se pode ver" foi um dos motores para a organização da antologia "Imagining Realities", segundo Kevin Macdonald, um dos responsáveis pelo volume. Macdonald mantém uma média impressionante: sua seleção de textos sobre o cinema documentário nasce clássica, assim como o primeiro de seus livros, a biografia "Emeric Pressburguer, The Life and Death of a Screenwriter" (Faber, 1995).
Sua família tem cinema nas veias. Pressburguer, roteirista e co-diretor, com Michael Powell, de clássicos britânicos como "Narciso Negro" (1947) e "Sapatinhos Vermelhos" (1948), era seu avô. Kevin começou a trabalhar em filmes ao lado de seu irmão, Andrew, que viria a produzir nada menos que "Trainspotting".
Enquanto Andrew já foi a Hollywood ("A Life Less Ordinary"), Kevin optou pelo documentário, como explica na entrevista abaixo, concedida à Folha por fax. Sua especialidade são retratos de personalidades algo misteriosas do mundo cinematográfico.
Seus principais filmes foram dedicados aos americanos Stanley Donen ("Cantando na Chuva", co-dir. Gene Kelly, 1952) e Howard Hawks ("Scarface", 1932). No ano passado, Macdonald lançou luz sobre a trajetória de um dos mais injustiçados coadjuvantes da comédia muda, Eric Campbell, o ogro que Charles Chaplin adorava humilhar.
Ainda menos lembrado é o tema de seu atual projeto, o cineasta Donald Commell, que co-dirigiu com Nicholas Roeg o mais cult dos filmes estrelados por Mick Jagger, o pop "Performance" (1970). Leia abaixo uma síntese de seu depoimento. (AL)
*
Folha - Por que apenas dois latino-americanos (Alberto Cavalcanti e Santiago Alvarez) marcam presença em seu livro, deixando de fora contribuições importantes de nomes como o chileno Patrício Guzman e o argentino Fernando Solanas?
Kevin Macdonald - Para ser honesto, eu nunca ouvira falar de Guzman. Você deve lembrar que um dos maiores problemas com documentários é que é raro exibi-los internacionalmente, e raro também ver retrospectivas de documentaristas. É difícil assistir aos grandes documentários europeus, quanto mais os da América Latina. Esta, aliás, é uma das motivações para "Imagining Reality" -permitir às pessoas ao menos ler sobre os filmes que não podem ver!
Quanto a Solanas, conheço a grande reputação dele, mas não pude encontrar nada suficientemente interessante escrito sobre ele para incluir no livro. "Imagining Reality" é uma antologia, limitada pela qualidade e acessibilidade de textos já prontos. Cavalcanti e Alvarez falam por si mesmos -a influência deles têm sido internacional e a reputação dos seus filmes continua viva.
Folha - Seu primeiro livro, "Emeric Pressburguer - The Life and Death of a Screenwriter", foi a biografia de seu avô. Como surgiu a idéia?
Macdonald - Foi um trabalho de amor. Eu o escrevi para conhecer melhor meu avô, que foi um homem solitário e misterioso. Quando comecei a escrever não tinha a menor idéia de que viria a trabalhar em cinema. Eu considerava, e ainda considero, aquele livro sobretudo uma contribuição literária e não crítica. É um livro muito pessoal, sobre família, tempo e lugar.
Folha - Como você foi fisgado pelo cinema durante o processo de escrita?
Macdonald - Suponho que eu tenha sido influenciado pelo que aprendi ao escrever a biografia -fatos podem ser transformados em histórias maravilhosas que também nos ensinam algo sobre a condição humana. Meus interesses sempre giraram em torno da interação entre "realidade" e "história" -em como a realidade pode virar uma história, ser manipulada e realçada, mas manter-se fiel a sua verdade essencial.
Folha - Como você escolheu os personagens de seus documentários sobre cinema?
Macdonald - Como quase todo diretor, estou restrito a trabalhar nos assuntos para os quais eu consigo levantar dinheiro. Não quero dizer que já fiz filmes sobre algo ou alguém que não me interessava intensamente. Mas meus interesses são amplos e rodei documentários sobre assuntos que interessaram produtores de televisão -o pessoal que tem dinheiro.
Folha - Comece falando sobre o filme dedicado a Stanley Donen.
Macdonald - Donen está no topo de meu panteão. Gosto particularmente de seus musicais e das comédias, como "O Diabo É Meu Sócio" ("Bedazzled", 1968) e "Um Caminho para Dois" ("Two For the Road", 1967).
São tão repletos de invenção fílmica que não consigo gostar de quem não gosta deles também. O meu favorito é "Dançando nas Nuvens" ("It's Always Fair Weather", 1955), pois é um fecho triste e elegíaco à trilogia aberta por "Um Dia em Nova York" ("On The Town", 1949). Donen não é um diretor intelectual; ele não tenta impôr uma visão de mundo ao espectador.
Folha - E o filme sobre Howard Hawks, "Um Artista Americano"?
Macdonald - Hawks é o oposto. Para ser honesto, parei de gostar dele e dos filmes dele quando fiz o documentário. Percebi que não há nada por baixo das aparências -o que você vê é tudo. Não há um real conhecimento da natureza humana. É tudo pose e elegância. São os filmes da eterna adolescência.
Folha - O que o levou a rodar "Chaplin's Goliath" ("O Golias de Chaplin")?
Macdonald - O que me fascinava em Eric Campbell foi que era uma pessoa sobre a qual ninguém tinha ouvido falar, mas era universalmente conhecido graças à sua aparência.
Os filmes em que atuou foram e são os mais vistos do mundo. Todos o reconheciam, como a um tio, mas ninguém sabia quem ele era. Campbell participou de onze dos filmes de Chaplin -e depois desapareceu. Queria descobrir o que aconteceu com ele e dar uma história e uma personalidade àquele rosto.
Folha - Ainda menos conhecido é o tema do documentário que você está terminando. De Donald Cammell pouquíssimos vão lembrar, e sempre como co-diretor do cult "Performance" (1970).
Macdonald - É como ele é conhecido em todos os lugares. Cammell escreveu e dirigiu o filme -não acredito que o "autor" tenha sido Nicholas Roeg. Acho que "Perfomance" é um dos maiores filmes -tão complexo, tão atraente, com uma superfície cintilante e bela de efeitos de estilo. Me interessava também saber o que aconteceu com ele.
Engajei-me no documentário quando Cammell se matou em Hollywood no ano passado. Quis saber a razão e também por que ele só rodou dois filmes depois de "Performance". A resposta que encontrei foi que ele sempre esteve "semi-apaixonado pela morte fácil", para citar Keats. Suicídio era para ele o último ato estético.

Texto Anterior: CLIPE
Próximo Texto: Strehler é figura imortal de uma arte efêmera
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.