São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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A terra feliz sem rei nem lei

JEAN M. CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tão longa quanto a história do Brasil é a história das narrativas de viagens em que figura o Brasil. O gesto mesmo da descoberta foi habilmente descrito por um visitante, Pero Vaz de Caminha, aquele que desenhou para a civilização européia o retrato rudimentar dos nativos -homens "nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas"- e traçou o primeiro esboço das qualidades da terra -"em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo".
À "Carta" de Caminha seguiram-se, para falar somente dos mais célebres, os relatos de Pero Lopes de Sousa, de Álvaro Nunes Cabeza de Vaca, de Ulrich Schmidel, de Hans Staden, de Antonie Knivet, de André de Thévet e de Jean de Léry. Todos, com mais ou menos detalhes, com mais ou menos simpatia, descreveram os contornos da terra e os estranhos hábitos dos seus habitantes.
Sobre esses habitantes, o francês Nicolas Barré (companheiro de Villegaignon) teceu, em 1556, um comentário que bem ilustra o quão exótico eram tais seres para o civilizado europeu: "Tudo me leva a crer que esses nativos são o povo mais bárbaro e estranho que habita sobre a Terra. Eles vivem sem conhecimento de nenhum deus, sem inquietude de espírito, sem lei e sem nenhuma religião" -não é improvável que esse comentário tenha inspirado a famosa passagem dos "Ensaios", na qual Montaigne menciona a descoberta no Novo Mundo de um povo sem lei nem rei, mas que parecia ser feliz.
Em 1604, a Coroa portuguesa baixou um decreto proibindo a vinda de estrangeiros para o Brasil, o que implicou uma diminuição do número de relatos sobre o país. Dos poucos produzidos, não mais do que meia dúzia descreveu o mundo que o lusitano estava construindo do outro lado do Atlântico, isto é, descreveram os primeiros núcleos urbanos da colônia e os seus habitantes, os chamados "portugueses e portuguesas da América".
Mas quem eram, aos olhos do europeu, esses híbridos que habitavam os trópicos? O francês Pyrard de Laval, de passagem pela Bahia de Todos os Santos, em 1610, descreve-os como "degredados, falidos ou criminosos" e, não contente, diz que as suas mulheres eram "muito mais afáveis e mais amigas dos estrangeiros do que os homens", dando a entender que o recato não era a virtude mais cultivada por essas senhoras.
O capitão inglês Edward Barlow, meio século mais tarde, não faz comentários sobre a qualidade dos colonos ou sobre a moralidade das suas mulheres, mas fica admirado com o fato de as famílias brancas terem uma infinidade de escravos, desempenhando todas as atividades possíveis e imagináveis.
Passam os anos, e a imagem pouco edificante dos portugueses do Brasil persiste. François Froger, um jovem engenheiro francês que esteve um mês ancorado na baía de Guanabara, em 1695, conta que os cariocas possuíam "numerosos escravos e que isso os tornava moles e efeminados, ao ponto de serem incapazes de apanhar um alfinete". Prossegue o seu libelo, afirmando que o excesso era tão comum entre os habitantes que, "não somente os burgueses, mas também os religiosos", podiam "manter relações com mulheres públicas" sem serem vítimas de censura. E arremata: "Temo que eles nos façam assistir, em breve, ao incêndio de uma nova Sodoma".
O século 17 não trouxe quaisquer melhorias para a imagem dos habitantes da América portuguesa, a situação chega mesmo a piorar. Comentários pouco elogiosos sobre esses colonos foram proferidos por homens famosos. Foi o caso do astrônomo francês La Caille, que nos visitou em 1747. O cientista, depois de tecer algumas considerações sobre os sinais aparentes de religiosidade do carioca e de referir a existência de alguns penitentes laicos, que, durante a noite, arrastavam pesadas correntes pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, conclui: "A conduta desses penitentes é tão escandalosa durante o dia quanto edificante durante a noite".
Outra figura ilustre que não poupou os portugueses do novo mundo foi o capitão John Byron, avô do famoso poeta inglês. Byron, em visita ao Rio de Janeiro, em 1764, afirma ter observado que os colonos, ao entardecer, se dirigiam para "casas de prazer, onde se dedicavam a todo tipo de excessos".
O lendário James Cook, em 1768, foi ainda mais longe: pintou esses homens como ignorantes e exageradamente religiosos e proferiu sobre suas mulheres comentários mordazes. Garante o capitão que "as mulheres da América meridional concedem os seus favores mais facilmente do que aquelas dos países civilizados" e que, ouviu dizer, "não havia uma única mulher honesta" no Rio de Janeiro.
Em 1792, o porto do Rio de Janeiro recebeu a sua última visita ilustre antes da chegada de d. João 6º: a portentosa frota que conduzia a comitiva do primeiro embaixador britânico na China, Lord Macarteney. Três membros da frota deixaram registradas as suas impressões sobre os portugueses dos trópicos, a maior parte das quais negativas.
Com visitantes tão desprovidos de tolerância, não se admira que os "portugueses da América" tenham chegado ao século 19 com a fama de serem preguiçosos, supersticiosos e carentes de uma moral sólida, um povo a quem Deus brindou com "o mais belo país que o sol ilumina", mas "que dele não retira nenhum dos proveitos que um povo ativo e trabalhador retiraria" -sentenciou um marinheiro francês, em 1747.
A chegada de d. João 6º, em 1808, marca o início da fase de ouro das narrativas de viagem sobre o Brasil. O volume de obras editadas entre 1808-1890 é significativo, muitas delas com uma enorme riqueza de informações. Para ser muito sucinto, nessas narrativas, nomeadamente nas produzidas durante as três primeiras décadas do Oitocentos, configura-se uma nova imagem dos habitantes do Brasil: a de um povo a caminho da civilização, um povo que se europeiza. Spix e Martius sintetizam magistralmente essa idéia, ao comentarem, em 1817, de que o contato com "a civilização e a cultura da velha e educada Europa" começava a dissipar, nas cidades brasileiras, os traços da "selvajaria americana".
Mas essa secreta esperança de que os antigos "portugueses dos trópicos", agora brasileiros, pudessem abraçar por completo os "civilizados hábitos" europeus não demorou muito a esmorecer. Ultrapassadas as mudanças ocasionadas pela chegada da corte joanina (1808) e a euforia da Independência (1822), retornam, de uma forma ligeiramente alterada, as velhas imagens pintadas pelos visitantes dos tempos coloniais. Os brasileiros, aqueles dos centros urbanos, passam a ser descritos como seres tocados pelas luzes da civilização européia, mas acorrentados à barbárie pelos vícios do passado: a ociosidade, a religiosidade excessiva, a moralidade demasiado frouxa.

Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais; ele prepara um livro sobre as narrativas de viagens até o século 18.

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