São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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As desconstruções de Dario Fo

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Maquiavel, como se sabe, escreveu uma das mais belas comédias da Renascença italiana: "A Mandrágora"; comédia em que o modelo clássico, plautino ou terenciano, era rompido pela violência de uma linguagem (o toscano) fortemente dialetizada, pela explosão de um erotismo desenfreado e por um feroz anticlericalismo. O dialeto do Vêneto camponês constitui a linguagem de outro grande da comédia renascentista, Angelo Beolco, chamado "O Ruzante". Sua "Moscheta" é uma obra-prima da dramaturgia, em que o erotismo camponês, miséria popular, protesto contra a guerra e revolta contra os poderosos criam insondáveis e ferozes misturas.
O dialeto é, portanto, central nas duas maiores obras-primas da dramaturgia renascentista italiana. Por que o dialeto? Porque é popular, direto, imediato. A Itália é um país em que a língua nacional foi uma construção dos poderosos. O dialeto foi e permanece sendo a língua do povo e da denúncia
(no cárcere em que vivo, em Roma, os detentos -todos de classes subalternas- falam em seus dialetos. Para mim, homem do Norte que desde a infância falou em italiano, são amiúde incompreensíveis. Mas que extraordinário poder expressivo, que força de chamar as coisas com o nome da prepotência e da injustiça têm essas formas dialetais que sobreviveram!).
Há mais. O dialeto não é apenas a linguagem popular: é também a linguagem aberta, construtiva. Suas normas são plásticas, a onomatopéia sempre possível, a invenção necessária, e o verbal é frequentemente acompanhado por uma gestualidade indistinguível. Sempre na Renascença italiana, por meio da transformação da linguagem goliarda dos clérigos vagantes, foram realizadas outras experiências construtivas, entre latim (língua do clero), italiano (língua dos eruditos) e dialetos, que levaram àqueles poemas "macarrônicos" em que o gênio de Teofilo Folengo se distinguiu.
Esta experiência tampouco restringe-se à Itália. Na França, país de língua normatizada por excelência, o exemplo da obra de François Rabelais talvez represente um limite extremo de transgressão e criatividade linguísticas, além de um fortíssimo exemplo de liberdade: Lucien Febvre e Bakhtin irão nos lembrar disso.
Neste ano conferiu-se a Dario Fo o Prêmio Nobel de Literatura. É impossível descrever o que se deu na Itália com a notícia desta atribuição. A cultura acadêmica e preciosa da classe dirigente, unânime, se insurgiu; nem sequer com elegância, ainda que na poesia ou na prosa desses homúnculos não haja sequer a sombra de um potencial de indignação. Mas grasnaram: como pode a Academia da Suécia rebaixar-se ao premiar um saltimbanco e ao reconhecer dignidade literária ao "lazzo", vernáculo e gestual, ao triunfo dialetal de um construtivismo linguístico muito pouco culto, eclético e sensacionalista?
Nos jornais italianos pôde-se ler um montão de insultos, dirigidos a Fo e à Academia, de insinuações e de sibilinos maus humores. E, para ilustrar o quão indigesto era o prêmio, podiam ser lidas crônicas descrevendo como Aqueletal e Aqueloutrotal velhos retóricos (que havia décadas consideravam-se merecedores do Prêmio) expressavam, depois da notícia feral, desesperadas meditações.
Mais divertido ainda foi o modo com que Dario Fo acolheu, viveu e defendeu o seu prêmio: multiplicando os "lazzi", imitando os velhotes da academia itálica, acolhendo e revertendo paroxisticamente as acusações, fazendo sua auto-exaltação como saltimbanco, divertindo-se como um bufão...
Ainda assim, tenho a impressão de que, agindo desse modo, Dario Fo estivesse subestimando a importância de seu teatro. Não só por este ser herdeiro daquela tradição humanista que, desde a Renascença, expressa radicalmente, por meio de suas capacidades linguísticas, uma reivindicação de liberdade. Mas também pelo fato de o teatro de Fo, a partir daquela tradição "outra" que sempre se opôs ao poder (e a qualquer manifestação áulica da cultura), tornar-se singularmente capaz de morder a atualidade e de estar aberto a novas experiências expressivas e libertárias, formais e políticas; enfim, um teatro para a atualidade pós-moderna.
Explico-me, propondo duas considerações. A primeira é que a manipulação linguística em Fo é constitutiva do seu teatro, imita eventos (e modos extremamente fortes de dizê-los), expressando portanto a "verdade contra" toda a estrutura e forma linguísticas que aqueles eventos escondem ou mistificam. Fo é realmente, deste ponto de vista, um desconstrucionista. Observem como desconstrói (e denuncia) aquela repressão infinita que, desde os anos 70, vem se prolongando, na Itália, contra aqueles homens generosos que queriam a renovação do país -e como pede a anistia! A segunda consideração é que, por meio de seus "pastiches" linguísticos, Fo inventa, molda, interpreta e prefigura a linguagem atual de uma época pós-moderna e pós-colonial.
A vanguarda torna-se aqui popular: no mundo nômade do pós-moderno e nas hibridações linguísticas que operam em qualquer metrópole, aqueles antiquíssimos jogos do truão representam a mais alta modernidade. Minha experiência linguística do império pós-moderno não é muito ampla. Mas Fo me parece "rapear" os dialetos italianos e europeus como um "beur" da periferia parisiense ou um negro ou um hispano-americano "rapeiam" sobre a linguagem da nova miséria metropolitana e as atrozes vicissitudes da integração pluricultural.
Com Fo nós podemos convidar Maquiavel, Ruzante e Rabelais a produzirem novas manipulações linguísticas que sejam experiências de verdade e, ao mesmo tempo, de liberação. Adequadas a esta época trágica e formidável, às mutações de nosso tempo.

Tradução de Roberta Barni.

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