São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Abraços, Brazil

LOUIS BEGLEY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Miséria e esplendor dos romancistas! A cada nova história, deixamos no papel nossos tesouros mais escassos e preciosos: lembranças de pessoas, lugares e acontecimentos, alegrias e mágoas ocultas, triunfos e humilhações, o "eu" que já se transformou tantas vezes, o "eu" que tínhamos por secreto (ou que gostaríamos de manter assim). É este o bricabraque de que a literatura é feita. Mas que o leitor fique alerta. Nós, que trabalhamos cada pensamento, cada palavra para pôr a nu nossa verdade mais íntima -a única que importa-, jamais contamos a verdade tal qual entendida em uma delegacia de polícia. "Segunda-feira de manhã, por volta das nove horas, eu estava entrando no meu Chevrolet para ir à praia quando notei que as rodas da frente haviam sido roubadas..." Quando um policial de plantão registra tal ocorrência, volta e meia lambendo a ponta do lápis que precisa ser apontado com urgência (ou será que, atualmente, ele escreveria em um "lap top" japonês?), a verdade consiste em resistir à tentação de contar-lhe que os pneus eram novos em folha, o que inflacionaria o pedido de reembolso à companhia de seguros, quando de fato você não trocou os pneus desde que comprou o Chevrolet de um comerciante de Niterói, 100 mil quilômetros atrás. A verdade de um romancista -caso ele descreva tal cena- parte de princípio diverso. Basta-lhe acomodá-la de modo tão perfeito quanto possível naquela realidade ordenada que ele está em vias de montar. O resto, a realidade cotidiana, pode muito bem ficar na sombra, até o dia em que, num novo esforço, o romancista queira transmutá-la em mais uma obra de arte.
Isso porque o romancista -um autor de ficção- aprendeu (ou talvez sempre soubesse instintivamente) que a realidade sincera, ainda em estado bruto, não faz sentido. Uma tal realidade, uma tal verdade não tem forma ou distinção, não tem interesse algum, a não ser para agentes da lei, peritos de companhias de seguros e jornalistas. Ao passo que o romancista, caso escrevesse a frase que eu pus entre parênteses logo acima -uma frase que lhe parece indispensável à sua história sobre o frescor, exaustão ou desespero num começo de manhã e sobre a moça que o sujeito infeliz tinha esperança de encontrar na praia de Ipanema, antes de vê-la cercada por seus amigos, todos eles mais ricos e autoconfiantes-, bem, o romancista sofreria um prejuízo maior que as duas rodas com pneus Pirelli, um prejuízo irremediável. O carro (na vida real pode ter sido um Honda que o romancista certa vez pediu emprestado à madrasta e só devolveu muito depois da hora em que ela precisaria usá-lo), a mulher que o amava, as mentiras tolas que ele lhe contou e nas quais ela não acreditou -tudo isso o romancista teve que deixar de lado. Eram suas enquanto as manteve fora de sua arte. Uma vez usadas, pertencem aos leitores. Ele agora está mais pobre e magro, como um pinguim nadando com o que resta de suas forças até alcançar a praia e o ninho faminto, onde regurgitará, goela afora, nos bicos de sua cria recém-chocada, o peixe que capturou no oceano há tantas milhas de distância. E, a cada história que o romancista escreve, reinicia-se o mesmo ciclo cruel de auto-expoliação.
Cenas no Rio de Janeiro
Já estive por diversas vezes no Brasil, e escrevi duas vezes sobre o país. Em "O Homem que se Atrasava", criei cenas ambientadas no Rio de Janeiro e em um hotel na baía de Angra dos Reis e cujo protagonista é um homem chamado Ben -um banqueiro rico e prodigiosamente bem-sucedido, envolvido em uma grande transação internacional. Na verdade, Ben está condenado. Ele sofre de um mal secreto e mortal: sua incapacidade de amar e se deixar ser amado ou de aceitar imperfeições em si mesmo e nos outros. Ele mesmo julga que lhe faltam humildade e caridade -e está certo. O fato é que Ben não tem saída. São cenas carregadas de ódio a si mesmo, de erotismo cruel, de efeito amplificado pelas belíssimas paisagens que descrevo no livro e que me são caríssimas.
Em meu último romance, "About Schmidt", ainda não publicado no Brasil, escrevi sobre uma ilhota no meio do Amazonas, não muito longe de Manaus. O protagonista do livro foge de uma situação familiar insustentável. Falo sobre a casa arejada e misteriosa, toda construída com madeiras nativas, a aldeia cabocla, a beleza da vegetação e dos pássaros ribeirinhos, e ainda sobre o guia alemão e seu ajudante indígena que revelam a Schmidt as maravilhas do rio. Schmidt é outro homem ferido. A ilha o ajuda a se curar e lhe dá forças. Ao escrever essas páginas, fiz uso de minhas próprias experiências, bem como de certas possibilidades que induzi ou imaginei. Distanciar-me do que escrevi em meus romances para escrever sobre um outro Brasil que também conheço e que transformei em minha ficção, e sem o qual essa ficção não teria sido criada -é uma tarefa arriscada. O romance tem um poder mágico. Será que corro o risco de quebrá-lo?
Semanas antes do Carnaval
Devo ter ido ao Rio de Janeiro pela primeira vez em 1971. Eu era relativamente jovem -em comparação com a idade das pessoas com quem lidei, todos um bom tanto mais velhos- e advogado relativamente iniciante, muito embora o prestígio da minha posição de sócio de um importante escritório de advocacia nova-iorquino, combinado com minha teimosia inata, acabassem por fazer valer minha vontade nas negociações. Cheguei ao Rio algumas semanas antes do Carnaval, em uma temperatura de forno e umidade de um banho turco. Vinha de Tóquio, para onde fora inteiramente equipado para o frio cortante de Nova York e o clima pouco mais cálido do Japão. A viagem ao Rio foi inesperada, uma necessidade repentina. Isso tudo foi antes da era em que todo prédio de escritórios e quase todo automóvel era equipado com ar-condicionado. Sentia-me embaraçado em meus pesados ternos cinzas, pela necessidade em puxar meu lenço e enxugar o rosto, por ter que continuar de paletó quando todos estavam em mangas de camisa -à hora das reuniões a camisa limpa que eu vestira no hotel já estava empapada de suor.
Todos os dias eu ansiava pelo cair da noite, quando uma brisa fresca refrescava a cidade e eu podia vestir calças de algodão e a camisa Lacoste que comprara na rua atrás do anexo do Hotel Copacabana, onde estava hospedado. Talvez você se pergunte por que eu não havia comprado um ou dois ternos de verão. Os motivos eram simples: eu não sabia onde comprar algo que não parecesse ridículo e não tinha tempo para ir às compras. Não havia ninguém a quem eu pudesse pedir ajuda.
O fato é que eu não conhecia ninguém, exceto um advogado famoso e eminente, de quem eu, em nome de meus clientes, extraía a duras penas certas concessões às quais ele de mau grado acedia. Havia também um advogado bem menos brilhante, encarregado de me assessorar em questões jurídicas brasileiras, e um banqueiro esnobe. A esposa do banqueiro me pareceu irresistivelmente atraente. Pouco antes da Terça-feira Gorda, o banqueiro e sua mulher me convidaram para uma festa com seus amigos ao redor da piscina do Iate Clube. Bebemos bastante. Às quatro ou cinco da manhã -começava a amanhecer- a esposa dançou sobre a nossa mesa com os seios à mostra. Isso de fato aconteceu? Eu tentei mesmo convencê-la a sair comigo? Eu estava tão cheio de uísque e me expusera a tal vexame na pista de dança que já nem tenho certeza de nada.
A verdade é que eu andava dolorosamente retraído e infeliz; precisava ocultar minha solidão e minha timidez. Era por isso que aguardava as noites, não só porque o ar refrescava, mas porque eu podia caminhar pelas ruas do Rio e seguir de um canto a outro da cidade os grupos de foliões que desciam das favelas em direção às praias. Nesse tempo o Rio parecia totalmente seguro, ainda que ocasionalmente me advertissem sobre caminhadas noturnas na praia de Copacabana. A gentileza dos foliões era prodigiosa. Um grupo de moças e rapazes me tomava pelos braços e literalmente me conduzia nos passos do samba, dava-me tapinhas nas costas e beijava-me a cada sinal de progresso realizado. Eu lhes oferecia refrigerantes em algum boteco de esquina. Recusavam qualquer álcool, até mesmo cerveja. Não faço idéia da língua em que nos comunicávamos: talvez eu lhes falasse em espanhol, que eu dominava com mais firmeza, e de algum modo decifrava suas instruções e estímulos. E decerto não me sentia excluído. É daí que formei minha impressão da cativante gentileza dos brasileiros, sua prodigiosa boa índole. Em "O Homem que se Atrasava", escrevi que, à beira da piscina do hotel Copacabana Palace, Ben (meu protagonista) tem a impressão de estar "num aviário sem teto com pássaros falando em russo. Era esse o som do português dos cariocas". Sim, pássaros belos e gentis. Quando escrevi isso, pensava nos moleques do Rio.
Meu envolvimento com questões jurídicas relacionadas ao Brasil cresceu com o tempo. Um período muito infeliz da minha vida pessoal também terminou. Voltei a fazer amigos -e notei então que muitos deles eram brasileiros. Mantenho laços estreitos com a maioria deles. Entre esses amigos figura uma família encantadora: o patriarca, um financista renomado, também serviu ao Brasil como estadista de destaque; seus filhos têm amplos interesses, dos negócios à literatura e às artes; as noras são talentosas e adoráveis. À vontade tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, falando várias línguas com refinamento, são todos, segundo me parece, profundamente ligados ao Brasil e à sua herança. São patriotas na melhor acepção do termo, sem qualquer traço de chauvinismo ou xenofobia. Tive a alegria de ver dois garotinhos, a terceira geração da família, crescerem como amigos dos meus próprios netos. Aliás, este é um padrão sociológico que vi repetir-se no contexto de mais uma ou duas outras famílias brasileiras, das quais sou menos íntimo. Nos anos 50 e 60, um empresário ousado e visionário cria uma grande fortuna a partir de meios modestos. Em seu núcleo, um ramo central de atividades para as quais o empresário tinha especial talento e das quais flui um rio de dinheiro. Os tentáculos da fortuna gradualmente se estendem pela mineração e pela agricultura em larga escala. O crescimento da fortuna é estimulado pelas políticas protecionistas do período e pela participação compulsória de cidadãos brasileiros em grandes projetos de investimento. O poder passa então para as mãos dos filhos -bem menos propensos aos riscos que o fundador, trabalhando duro para se adaptarem a uma economia aberta e à competição global. São parcialmente atados pelo hábito de complicar transações que, penso eu, resulta de décadas de excessiva regulamentação governamental e de esquemas urdidos para escapar à inflação e aos sufocantes controles cambiais. Há sempre exceções para confirmar a regra, mas sempre me impressionou a ânsia dos herdeiros por gerir os negócios da família e devotar suas vidas a eles. Estamos longe do estereótipo do playboy latino-americano ou de seu predecessor, o cafeicultor de olhos brilhantes como carvão em brasa, esbanjando fortunas nas mesas de bacará.
Nem todos meus amigos brasileiros são magnatas. Conheci engenheiros brasileiros ocupados com processos metalúrgicos avançados, jovens banqueiros de vários naipes, jornalistas e profissionais da mídia, naturalmente um enorme contingente de advogados e uma diretora de cinema incrivelmente bela e talentosa que um colega meu, já morto, conheceu quando o navio militar americano em que ele servia ancorou no Rio de Janeiro. Ele viveu com ela por vários anos no Rio e depois em São Paulo, onde os visitei em um mês de agosto particularmente frio, numa casinha nos arredores dos Jardins, desta feita lamentando não ter trazido roupas mais pesadas ou alguma fonte de calor além daquele pequeno aquecedor elétrico. Mais tarde ele a trouxe para os Estados Unidos e para uma vida de decepções.
E nem todos meus amigos brasileiros foram ricos. Durante uma das minhas expedições de samba pelas ruas do Rio eu encontrei uma garota de pele escura -uma criança, na verdade, pois ela não podia ter mais que 14 anos, por mais que dissesse ter 17-, que era a melhor dançarina de todas. Ela me perguntou onde eu morava no Rio. Eu lhe disse. Alguns dias mais tarde, quando voltei para o hotel depois de uma tarde de reuniões, ela lá estava ela no lobby. Jamais saberei como ela conseguiu descobrir se eu de fato estava lá e de como a deixaram esperar por mim, em frente ao elevador, sentada na poltrona em que a encontrei. Fato é que ela me achou interessante, queria conversar comigo, sabia um mínimo de inglês e entendia o que eu tentava lhe dizer em espanhol. Não queria dinheiro ou presentes ou uma chance de emigrar para os Estados Unidos: só lhe atraíam a conversa e os chocolates, dos quais tinha bom estoque na minha suíte. Voltou várias vezes no curso da minha longa estada, súbita e inesperadamente, e quando lhe disse que ia partir, ela me deu um número de telefone. Quando lhe liguei em visitas subsequentes, o barulho de fundo me fez pensar que se tratava de uma loja. Ela não trabalhava lá, mas a notícia chegava até ela, que invariavelmente aparecia. Uma vez ela me disse que, se eu lhe desse um pouco de dinheiro -deve ter sido o equivalente em cruzeiros a US$ 5-, ela me faria uma surpresa. Reapareceu no dia seguinte, inteiramente transformada. Fora ao cabeleireiro! Pena ter perdido contato, como perdi o contato com as crianças caboclas de uma ilha no Amazonas, descritas em meu romance "About Schmidt", para as quais mandei pelo correio uma soberba bola de futebol profissional. Eu os assisti, dois times de garotos e garotas descalças, jogando uma partida feroz com uma bola de trapos atados com barbante.
Introduzi memórias pessoais do Rio e daquela ilha amazônica em meus romances. Se voltar a escrever sobre o Brasil em um romance, com certeza evocarei o caos clangoroso e soberbo de São Paulo, as avenidas sem fim, a praça no antigo centro da cidade com seu mercado de flores e, não longe dali, um restaurante com jeito de porão, azulado pela fumaça de cigarros, onde uma orquestra de quatro senhores mais idosos e de aspecto inteiramente europeu tocava noite afora. Ocorreu-me então que, exceto pelo cardápio, inteiramente em português, eu poderia estar em qualquer lugar do mundo; comoveu-me a hospitalidade com que o Brasil aceitou, integrou à sua vida e transformou em cariocas ou paulistas toda uma população de fugitivos de Hitler e das devastações da Segunda Guerra. Eles e seus filhos e ainda alguns netos que pude conhecer prosperaram numa atmosfera que me parece de extraordinária tolerância e boa vontade. Tão-somente seus nomes fazem pensar no Oriente Médio e na Europa Oriental. Têm o jeito e a confiança de quem pertence a um mundo novo.
Sem dúvida tentarei achar lugar para certas visões singulares: uma manada de 15 mil cabeças de gado malhado, suas corcovas alinhadas ao longo de cercas de arame farpado como um regimento de infantaria pronto para ser passado em revista por mim e pela minha mulher. Passamos por eles num jipe, trafegando por uma estrada de terra vermelha e poeirenta que parece infinita. A paisagem áspera de Minas Gerais, alternadamente ensolarada ou desolada, as ruas de paralelepípedo e as casas ofuscantemente brancas de Ouro Preto, os santos barrocos em suas igrejas perdidas no meio do mato. Asas-delta despencando de uma montanha e flutuando sobre o trânsito carioca em hora de rush. A inesperada elegância dos pés de café e a engenhosidade do modo antigo de colher, peneirar e torrar os grãos. Em minhas visitas mais recentes, os olhos ferozes dos garotos de rua no Rio e em São Paulo, mãos prontas para roubar a comida de cima da mesa de um restaurante ao ar livre.
Brasil, terra ainda da pinga e da caipirinha, da cerveja servida com destreza, mais fria que em qualquer parte (exceto no Japão), intermináveis cafezinhos servidos por empregados de libré uniformizados vestindo luvas brancas, e vinho tinto forte, comparável a um golpe de taco de beisebol na cabeça. De alguma maneira, devido a algum comentário descuidado sobre vinhos, espalhou-se a notícia de que aprecio um St. Emilion chamado L'Angélus. Durante toda uma viagem que me levou ao interior de São Paulo e Minas Gerais, encontrei o L'Angélus em todas as mesas de almoço e jantar. Decerto pensaram que eu recusaria qualquer outra bebida, ainda que, na verdade, eu adore beber pinga direto da garrafa! Ah, sem dúvida tornarei a escrever sobre o Brasil e, quando o fizer, há grandes chances de que escreva uma canção de amor.

Tradução de Samuel Titan Jr., revista pelo autor.

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