São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 1997
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Crônica de um erro não admitido

ANTÔNIO BARROS DE CASTRO

Três anos e meio após o lançamento do Plano Real, o problema do atraso cambial continua no centro das discussões. Daí, porém, não se deve concluir que esta seja uma questão bizantina. Estou mesmo convencido de que a sobrevalorização, para o bem e para o mal, e a despeito das inclinações dos formuladores do Real, veio a influenciar profundamente as transformações trazidas pelo novo plano. Visando demonstrá-lo, peço ao leitor que esqueça, por um momento, os argumentos singulares de críticos e defensores da política de câmbio -e admita que o governo, sob pressão das circunstâncias, veio a assumir as posições a seguir apontadas.
- Os setores ou regiões colocados em situação crítica (em decorrência da abertura exacerbada pela sobrevalorização) seriam objeto de programas especiais de apoio e proteção. Isso na prática implicava a abertura de negociações por meio das quais determinadas vítimas da nova política (setores, regiões, empresas) obtinham compensações, em troca da aceitação -aí incluído o silêncio- do quadro cambial vigente. A mudança equivalia, porém, a um patente desvio de rota, em relação aos que desejavam que a economia fosse entregue ao piloto automático do mercado.
- A excepcional liquidez vigente no mercado internacional de capitais seria intensamente explorada, de forma a compensar os déficits galopantes e imprevistamente verificados no balanço de pagamentos.
- A privatização passaria a ser assumidamente utilizada como instrumento para a travessia do difícil período durante o qual a política cambial seria, por hipótese, gradualmente corrigida -enquanto as empresas incrementavam progressivamente a sua competitividade.
- Por fim, e como infelizmente não houve tempo para concluir a travessia para uma situação sustentável, haveria que tentar cativar a confiança dos credores (e desta forma manter o financiamento externo), mediante medidas fiscais e monetárias de ostensiva severidade.
Chama a atenção, nesta leitura do ocorrido, o fato de que a equipe econômica não admite jamais a desvalorização "estricto senso" -mas a prática, intensamente, por vias transversas e indiretas. Merece igualmente destaque, o fato de que as razões pelas quais a descontinuidade na trajetória do câmbio é recusada, vão variando ao longo do tempo.
Num primeiro momento, correspondente a crise mexicana -e enquanto o chamado resíduo inflacionário ainda era de 30% ao ano-, a negativa da desvalorização foi (corretamente) justificada, pelo fato de que as expectativas inflacionárias se encontravam "a um milímetro da superfície".
Num segundo momento, que corresponde ao último trimestre de 1995 e aos primeiros meses de 96, a desvalorização foi evitada, possivelmente, porque a equipe econômica se equivocou gravemente em suas projeções da balança comercial -e também porque o governo namorava a idéia da retomada do crescimento sustentado.
Numa terceira fase, recentemente finda, seguramente pesou na sustentação do quadro cambial, a convicção de que o conjunto das compensações improvisadamente desenvolvidas ou acidentalmente encontradas, poderiam funcionar como uma bem-sucedida estratégia de contorno das dificuldades enfrentadas no front externo.
Passo a passo a trajetória do Real pode, pois, ser reconstituída, acompanhando-se as contorções impostas pela busca da viabilidade de uma política cambial que, por ironia da história havia sido anunciada, na primeira fase do plano, como ditada pelo mercado. No momento em que nos encontramos, contudo, vai ficando evidente que a recusa da desvalorização (que obviamente em nenhum caso seria previamente admitida) passa a repousar sobre um cálculo político. Estaria em suma prevalecendo a idéia de que a perda de uma quantidade maior ou menor de pontos na luta contra a inflação seria fatal para a reeleição do presidente.

Antonio Barros de Castro, 58, professor-titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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