São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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O avesso do avesso

EMIR SADER

De repente, uma parte dos pensadores políticos brasileiros "descobriu" que a reeleição é a condição da democracia. Por mais que se busque em sua prolífica e densa obra, não há nenhuma menção ao tema. De repente -amigos da verdade, mas mais amigos do presidente-, reiluminam tudo numa nova ótica.
No lugar do fortalecimento dos partidos, personalização do poder (ACM promete "melhorar" a emenda no Senado, estendendo-a aos parentes dos governantes). No lugar do parlamentarismo, governo recorde em emissão de medidas provisórias, com mais de uma por dia. No lugar da fidelidade partidária, campanha frenética para que a bancada do PMDB desobedeça a convenção partidária. No lugar da afirmação da diversidade ideológica e política, bloco com o PTB.
No lugar da afirmação da independência dos poderes, identidade de atuação do presidente da Câmara, do líder do governo e do ministro de articulação política. No lugar do debate político público, conciliábulos, dos quais saem com cara iluminada deputados do PPB, do PTB, do PPS, do PSB, do PV, unificados no mesmo ideal.
No lugar da reforma da representação dos Estados no Congresso, apoio firme nos grotões (de onde vieram 60% dos votos para a reeleição, incluídas as bancadas unânimes do Rio Grande do Norte e do Piauí, quase unânimes do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, enquanto se dividiram praticamente ao meio as bancadas de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul).
No lugar do império das leis, adequação à conveniência dos governantes e maiorias de turno, obtidas no que a imprensa chamou de "balcão de negócios". Tudo no melhor dos mundos possíveis.
A imagem e a trajetória política do presidente da República saem inevitavelmente manchadas do episódio. Pela negação do que defendeu antes de chegar ao poder e pelo ímpeto incomparável com que se lançou à busca de mais um mandato.
Só há uma forma de Fernando Henrique Cardoso minimizar esses danos: declarar formalmente, uma vez aprovada a reeleição, que não será candidato a um novo mandato. Que ele se convenceu da necessidade da reeleição no exercício do cargo, mas que não lhe parece justo que esse privilégio seja estendido a ele mesmo. Que vai se dedicar a fortalecer seu partido (aliás, alguém lembra o nome do presidente do PSDB? E o do técnico do Juventus?).
Dessa forma, quem sabe nossos pensadores políticos mudem um pouco o tom do coro e redescubram critérios sobre a ética de princípios e a da responsabilidade que não sejam simples versões descritivas que acobertam situação de fato, geradas pela conveniência de interesses de mais esse pacto de elites que articula a história do Brasil. E a teoria política possa recuperar um pouco de dignidade, junto com a democracia.

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