São Paulo, segunda-feira, 3 de fevereiro de 1997
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Jungmann cobra Estados por impunidade no campo

ABNOR GONDIM
MARTA SALOMON

ABNOR GONDIM; MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ao final de um "janeiro quente" e nove meses à frente do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, Raul Jungmann entrega aos governadores dos Estados o que considera ser hoje o principal desafio da reforma agrária: acabar com a impunidade.
"Nem invasores nem milícias" é o lema do ministro, que atribui aos Estados parte da culpa pela explosão dos conflitos no início do ano. Caberá aos governadores punir tanto os sem-terra que invadem quanto os fazendeiros que se armam para enfrentar invasões.
Nesta semana, o ministro Nelson Jobim (Justiça) começa a percorrer o país, em nome de FHC, em nova frente contra a violência no campo. Em entrevista à Folha, Jungmann disse que pretende cumprir a meta de assentar 180 mil famílias até o final do governo.
Para isso, estuda não pagar indenizações exageradas, que já comprometem quase R$ 1 bilhão -mais da terça parte do orçamento de 97 para reforma agrária.
*
Folha - O Congresso já reformou o ITR e aprovou o rito sumário para as desapropriações. Por que os conflitos de terra não param? Fugiram ao controle?
Raul Jungmann - Duas coisas contribuíram para a retomada dos conflitos neste janeiro quente.
Uma é um dado estrutural, a questão da impunidade. Veja só: no instante em que você tem uma execução sumária, anúncio de invasões, tem invasão de prédios e até cárcere privado, você está diante de uma situação que exige a averiguação, a determinação dos responsáveis e a punição.
Não é isso que vem acontecendo. Acabar com a impunidade é uma atribuição constitucionalmente delegada aos Estados.
O que não quer dizer que o governo federal não se disponha a colaborar. Está aí o ministro Jobim, que vai percorrer vários Estados, estão aí as operações de desarmamento projetadas para quatro ou cinco Estados.
Um outro dado é conjuntural. Janeiro é reeleição. Eu entendo que boa parte dessa subida de tom que nós tivemos estava relacionada ao processo de reeleição. Esse repique de janeiro teve uma certa previsibilidade.
Folha - O sr. está atribuindo o aumento do número de invasões à reeleição. Qual é a relação?
Jungmann - No Pontal do Paranapanema, claramente, essa expansão visa conquistar manchetes, chamar a atenção com uma certa artificialização da tensão. Não vamos achar que aumentou o processo conflitivo.
Há uma dinâmica própria. O governo federal honrou com todos os compromissos, liberou R$ 30 milhões em TDAs (Títulos da Dívida Agrária) para o governo do Estado de São Paulo.
Você tem uma fórmula para negociar até 34 áreas, todos os recursos foram passados. Não foi o que aconteceu, rompendo todos os acordos? Novas áreas foram invadidas.
Folha - O governo quer tratar a reforma agrária como caso de polícia?
Jungmann - Em absoluto. É uma questão sobretudo de justiça. Para mudar esse quadro, a impunidade tem que cair.
Folha - Tanto para quem invade como para quem mata?
Jungmann - É claro que há um delito muito mais grave, que é a perda de uma vida humana. Mas há outras formas de delitos. Esse vai ser o grande debate de 97.
Folha - Os governos estaduais têm sido tolerantes?
Jungmann - O governo federal se coloca à disposição e ao mesmo tempo espera que esse problema possa ter respostas mais eficazes e mais rápidas. O governo federal não pode imiscuir-se numa atribuição que é dos governos estaduais. É preciso respeitar um princípio federativo.
Mas, à medida que a invasão é uma violência contra um direito à propriedade, ela gera uma contraviolência, com risco de sangue e de morte. O que a gente tem que cobrar é que o Estado funcione.
E, se o Estado funciona direitinho, continua havendo invasão, continua havendo armamento de fazendeiro? Claro que não.
Folha - O sr. fala em avanços na legislação, mas o projeto que proíbe a desapropriação de terras invadidas não seria um retrocesso?
Jungmann - O governo não tem nenhum compromisso com esse projeto. Pelo contrário.
O que o governo entende é que a invasão é um instrumento obsoleto. Para que invadir, se a lei assegurar um prazo de 60 a 90 dias para a realização da vistoria? Estamos reforçando esse poder de cobrar. Com o MST, é difícil obter a concórdia.
Folha - Mas a pressão desses movimentos não é uma aliada sua?
Jungmann - Sem a menor sombra de dúvida. Mas aí a história só muda se tiver tragédia. A história mudou. Não precisa mais da tragédia. Cabe ao movimento social também mudar.
Folha - E a cabeça do ministro também mudou em nove meses?
Jungmann - Mudou, graças a Deus.
Folha - De socialista, virou defensor do neoliberalismo?
Jungmann - De maneira nenhuma. Eu continuo absolutamente acreditando no socialismo como uma opção ética e sobretudo de justiça social. Mas acho que o socialismo vive um enorme impasse hoje.
E acho também que, no Brasil, há uma possibilidade de unidade de amplos setores.
Folha - O que o sr. consideraria razoável como meta para um eventual segundo governo FHC, depois da meta de assentar 280 mil famílias até 1998?
Jungmann - A primeira coisa que devo dizer é que, na hipótese de vir a ocorrer a continuidade, é que você já parte de um patamar de 100 mil famílias assentadas por ano. Você pode pensar na manutenção disso, o que significará mais 400 mil famílias, ou, até quem sabe, elevar essa meta.
E aí você já terá instrumentos efetivos, um ITR desestimulando a concentração de terra, velocidade no processo também. E eu acho que estamos caminhando para um processo de reforma agrária cada vez mais negociado, com efetiva participação de trabalhadores e empresários. Estamos criando condições para dar um outro salto.
Folha - Esse seu desempenho já mereceu por parte do ministro Gustavo Krause (Recursos Hídricos) o lançamento de sua candidatura a deputado.
Jungmann - Honestamente, não tenho pretensões a carreira eleitoral.
Folha - O sr. diz que se recusa a negociar com o MST, mas não é isso o que vem acontecendo no Pará, por exemplo.
Jungmann - A causa do MST é justa, mas eu tenho um contencioso, uma divergência com os métodos do MST. Isso me leva a ter uma posição política em nível nacional de não negociar com o MST. Nada obstante, no plano operativo, não há o que desconhecer o papel que o MST representa.
Às vezes me aflige ver democratas, pessoas sérias, companheiros de esquerda, fazerem uma apologia, que é incorreta, da invasão. E eu retorno ao ponto inicial. Se o Estado funciona, nem invasores nem milícias.
Para mim, essa é a idéia central. Sem isso que eu digo, um certo segmento pode até ganhar, mas o conjunto perde. Eu tenho um exemplo que até me é muito próximo: na Rússia soviética se tentou e até se conseguiu reduzir a pobreza. O custo foram 22 milhões de mortos. Valeu? Não quero esse dilema.
Folha - O Incra vai dar "calote" no pagamento das indenizações milionárias a proprietários de terras desapropriadas?
Jungmann - Estamos procurando junto à Advocacia Geral da União uma maneira de protelar. Há casos escandalosos em que não foi assentada uma só família. Dá para rever.
É um conjunto de decisões judiciais, sim. Mas são também extraordinariamente prejudiciais ao programa de reforma agrária e ao controle do déficit público.
Folha - Elas podem inviabilizar a meta de assentar 180 mil até o final do governo?
Jungmann - É evidente que, se não for encontrada uma solução, essas indenizações podem colocar em risco o programa. A alternativa hoje é ganhar prazo, o que eu acho que a gente consegue até março.
Outra questão que nós vamos procurar encarar é a questão dos juros compensatórios, que encarecem significativamente a reforma agrária. Isso não é justo.

LEIA MAIS sobre a questão agrária à pág. 1-8

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