São Paulo, segunda-feira, 3 de fevereiro de 1997
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Dois tostões

JOÃO SAYAD

As mais bonitas ruas de Ouro Preto são muito estreitas. Também são estreitas as mais bonitas ruas de Parati, Olinda e da cidade baixa em Lisboa.
Já as capitais dos países da América espanhola têm grandes praças onde estão a catedral, o palácio do governador e outros prédios públicos, inclusive a universidade.
Em São Paulo tem chovido muito, como sempre acontece na primeira metade dos meses de verão.
Sempre foi assim. As vias expressas como as marginais do Tietê e do Pinheiros, construídas há mais de 20 anos, são inundadas pelos rios. As outras ruas, largas ou estreitas, também ficam cheias de água porque as galerias pluviais ou não existem ou estão entupidas.
Enquanto isso, o rádio vai fornecendo notícias sobre o trânsito, os alagamentos, indicando o melhor caminho ou pedindo que as pessoas não saiam de casa, porque dificilmente conseguirão chegar a qualquer lugar. Guiar em São Paulo é como pilotar avião: o rádio é indispensável.
Os intervalos entre as notícias do trânsito têm sido preenchidos por notícias econômicas.
As mais frequentes, na semana passada, eram comentários de consultores financeiros falando sobre a CPMF -como deixar de pagar legalmente, quais aplicações financeiras são mais atraentes depois da vigência do novo imposto e assim por diante.
A CPMF é um imposto de 0,20% sobre cheques emitidos, saques de depósitos ou aplicações financeiras. Não é preciso calcular se o imposto é alto ou baixo.
0,20% é 0,20% em qualquer lugar do mundo: se alguém comer sanduíche de mortadela por R$ 1, terá de pagar R$ 0,02 a mais. Duas moedinhas de um centavo de real que somente velhinhas exigem de troco na padaria, mais por princípio do que pela importância.
Se alguém aplicar US$ 100 mil em banco, vai gastar US$ 200 de imposto. Se com US$ 100 mil você pode comprar 200 mil televisores de 29 polegadas, o imposto representa US$ 2.000, ou seja, quatro televisores. Mas o que são quatro televisores para quem tem 200 mil televisores? É 0,20%, como o número está dizendo: para cada mil, você paga dois.
Mas a atenção dos ouvintes do rádio, dos leitores do jornal e de todo mundo não consegue largar o assunto: como deixar de pagar o imposto.
A arrecadação total do imposto deve ser entre US$ 2 bilhões e US$ 5 bilhões. Muito pouco para a saúde. Menor do que o custo estimado do anel rodoviário urgentemente necessário para São Paulo, parte pequena do total de gastos do governo com juros.
Basta um pouco de generosidade -ou, se quiserem, um pouco de desperdício- para concluir: é pouco para quem paga e pouco para quem arrecada.
Mas não se fala em outra coisa.
Por isso as ruas de nossas cidades são estreitas, as inundações são frequentes, a saúde não tem dinheiro, a cidade é feia, a universidade vai mal, o país não tem estradas, as estradas estão esburacadas.
Será que somos mesmo como velhinhas que brigam na padaria por duas moedinhas que, se caírem no chão, será difícil e dará preguiça de pegar?
Será que viramos um país de pão-duros, agiotas ou rentistas que gastam muito tempo com coisas sem importância e têm absoluta má vontade com qualquer gasto público -seja em estrada, saúde ou enchentes?
Será que sempre fomos assim ou foram tantos anos de inflação?
Olhando para as ruas estreitas das cidades antigas do Brasil, receio que sempre tenhamos sido assim. Brasília talvez tenha sido construída por Juscelino para alargar nossos horizontes.
Agora, o rádio pede para evitar a Radial Leste -um caminhão privado tombou sobre dois carros privados, dois mortos privados.
O trânsito na via pública ficará interrompido por muitas horas. São 140 quilômetros de congestionamentos causados por um caminhão privado!
A melhor via alternativa é a avenida do Estado, que, entretanto, está coberta por muitas lâminas d'água.
Novo noticiário econômico: autoridade do governo declara que acha correta a tentativa de evitar o pagamento da CPMF. Afinal de contas, "a missão do setor privado é maximizar lucros". Dá parabéns para quem conseguir não pagar os dois tostões de forma legal.

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