São Paulo, quarta-feira, 5 de fevereiro de 1997
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Reeleição: o atropelo como método

SANDRA STARLING

O governo optou por governar o país criando um emaranhado jurídico, gerado a poder de edições e reedições sucessivas de medidas provisórias, que dificultam tremendamente a administração da Justiça.
Agora, no processo de votação da reeleição, a base governista confirmou mais uma vez a sabedoria de Tancredo Neves, que ensinava: a esperteza, quando é demais, engole o esperto.
No afã de aprovar a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, alguns de seus deputados votaram a favor da manutenção do instituto da desincompatibilização. Assim, para concorrer à reeleição em 1998, Fernando Henrique Cardoso terá que renunciar ao cargo seis meses antes da eleição.
Quer dizer, na ânsia de conquistar mais quatro anos de mandato, alguns acólitos do presidente votaram a favor de um texto que pode levar à redução do atual mandato presidencial em nove meses.
Por meio de Destaque para Votação em Separado (DVS), a bancada do PT conseguiu eliminar do dispositivo que assegurava a reeleição a expressão "e concorrer no exercício do cargo".
Ao fazer essa proposta, a bancada teve a clara intenção de impedir que o aparelho de Estado venha a ser usado para influir no processo eleitoral em favor daqueles que ocupam cargos executivos em disputa. Esta foi a contribuição que conseguimos dar à democracia, à defesa de um jogo mais limpo.
Incapaz de derrotar essa proposta, porque boa parte de sua base volátil já havia abandonado o plenário e porque setores dessa mesma base também são favoráveis à manutenção da desincompatibilização, lideranças governistas fingiram que não se sentiam concernidas e mandaram votar favoravelmente à proposta. Tomaram, no entanto, o cuidado de elaborar uma interpretação que assegura seus propósitos de uso indiscriminado do aparelho do Estado para influir nas eleições.
Segundo a esdrúxula interpretação palaciana, todos são iguais perante a lei, mas Fernando Henrique é o mais igual dos iguais.
Ou seja, se um governador de Estado quiser concorrer à Presidência da República, terá que renunciar ao cargo de governador, para que não possa se utilizar da máquina de sua província durante a campanha eleitoral. Já o presidente da República, que controla a máquina federal, não precisaria se dar a esse trabalho. Para o presidente, o pleno usufruto do aparelho é permitido.
Essa interpretação forçada, dada pelo ministro Nelson Jobim, mereceu comentários favoráveis e contrários, conforme a posição política dos juristas consultados.
Queremos destacar apenas uma interpretação, a de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que, por sua condição, pode vir a ser chamado a dirimir a questão. Esse ministro, que, compreensivelmente, não quis se identificar, considera que a interpretação de Nelson Jobim é "pobre e primária".
Certamente, ao usar adjetivos tão duros para desqualificar a interpretação feita por Jobim, esse ministro tomou em consideração que, se prevalecesse aquela visão, estaríamos diante de um dispositivo incongruente e incompatível com o espírito e a lógica que presidem nossa Constituição.
Com essas considerações, queremos chamar a atenção do leitor para o fato de que a batalha democrática contra o golpe da reeleição ainda não terminou. Na votação do segundo turno, na Câmara, o governo não tem como alterar o dispositivo que assegurou a manutenção da obrigação da desincompatibilização.
Pode fazê-lo no Senado, mas, se o fizer, a matéria terá que voltar à Câmara dos Deputados. O governo pode ainda manter no Senado a redação do texto tal como ele foi aprovado pela Câmara. Nesse caso, caberá à Justiça pronunciar a palavra final. Seria de bom tom que Nelson Jobim, cotado para ocupar uma vaga no STF, tivesse o cuidado de se julgar impedido de participar desse julgamento.
Vale, finalmente, registrar que o atropelo como método, utilizado de forma sistemática pelo deputado Luiz Eduardo, terminou produzindo sua safra de lambanças.
Primeiro foi a reforma da Previdência, aprovada a toque de caixa pela Câmara e que, por isso mesmo, dorme há sete meses em alguma gaveta do Senado. Agora é o projeto do golpe da reeleição, que pode ter destino semelhante e que, no mínimo, já revelou de forma cabal o desprezo do governo Fernando Henrique Cardoso pela legalidade.

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