São Paulo, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1997
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"Ninguém segura esse país!"

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Nos anos 90, e sobretudo nos últimos dois ou três anos, o Brasil engajou-se alegremente em novo ciclo de endividamento externo. O entusiasmo e a despreocupação reinantes lembram, às vezes, o estado de espírito do Brasil do "milagre" econômico, época em que o general Médici, então presidente da República, lançou o exaltado "slogan" que serve de título a este artigo.
Era também uma época em que o brasileiro gastava muito no exterior. As principais capitais viviam infestadas de turistas brasileiros eufóricos e barulhentos. Escrevo, aliás, de Nova York, onde se esbarra com um brasileiro em praticamente cada esquina.
Dados de balanço de pagamentos para 1996, divulgados recentemente pelo Banco Central, confirmam que o processo de endividamento vai de vento em popa. O déficit em conta corrente -que inclui o déficit comercial, o déficit com serviços (inclusive turismo) e um superávit nas transferências sem contrapartida- chegou a US$ 24,3 bilhões, contra US$ 17,7 bilhões em 1995.
Em 1997, o déficit em conta corrente poderá alcançar, e até ultrapassar, os US$ 30 bilhões. A confirmar-se essa previsão, o Brasil terá acumulado, em apenas três anos, um passivo externo líquido adicional de US$ 72 bilhões ou mais.
Em tese, o endividamento externo pode desempenhar um papel positivo no desenvolvimento econômico de um país. Mas isso só acontece quando uma série de requisitos é rigorosamente respeitada.
Por exemplo: o ritmo de absorção de recursos externos tem de ser controlado, para que a dívida não cresça demais relativamente às exportações e à capacidade de pagamento do país. Os recursos captados no exterior devem ser destinados ao investimento e não ao consumo. Os investimentos têm de gerar um fluxo de rendimentos superior aos juros contratados. É preciso que grande parte dos investimentos ocorra nos setores produtores de bens e serviços internacionais (os chamados "tradeables"), gerando ampliação da capacidade de exportar ou substituir importações etc.
Infelizmente, esses requisitos quase nunca são respeitados na América Latina. Em geral, as fases de liquidez internacional abundante estimulam a adoção de políticas econômicas imprudentes e de horizonte curto.
Políticas cambiais irrealistas, de supervalorização das moedas locais, costumam desempenhar um papel central. De um lado, reduzem a competitividade internacional da economia e conduzem a desequilíbrios externos perigosos. De outro, justamente porque comprimem a rentabilidade dos setores exportadores ou dos que concorrem com importações, acabam levando a que os investimentos novos se concentrem nos setores produtores de bens e serviços domésticos, os chamados "non-tradeables".
O resultado é uma inconsistência dinâmica que pode terminar em crises de endividamento. Desde os tempos da independência, a América Latina já viveu processos desse tipo, mais ou menos sincronizados, diversas vezes.
O que dizer do episódio brasileiro atual? Parece evidente que a política econômica dos últimos anos vem ignorando olimpicamente vários dos requisitos acima mencionados.
Os resultados das contas externas em 1996 não deixam dúvida quanto à excessiva velocidade do processo de endividamento.
Além disso, a contrapartida principal da absorção de recursos externos tem sido o aumento do consumo. A taxa de consumo, medida a preços constantes de 1980 e definida como a relação entre o consumo agregado e o PIB, aumentou de 79,5% em 1993 para 87,3% em 1995, de acordo com o IBGE.
A formação bruta de capital fixo cresceu muito menos, passando de 14,4% do PIB em 1993 para 16,6% do PIB em 1995.
Ainda que se admita uma melhora significativa na qualidade e produtividade dos investimentos, uma taxa de investimento dessa ordem de magnitude é muito inferior à que seria necessária para sustentar um ritmo de expansão aceitável para a economia brasileira no médio e longo prazos.
As contas nacionais para 1996 ainda não foram publicadas, mas as informações até agora disponíveis parecem indicar que o quadro geral não se modificou substancialmente.
No acumulado do ano, até outubro, a produção física de bens de capital diminuiu nada menos que 17,5%, segundo o IBGE. A despeito do aumento das importações, o consumo aparente de bens de capital mecânicos caiu 8,3% em 1996, pelas estimativas da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos -Abimaq.
Enquanto isso, o governo propaga a versão de que estaríamos em pleno "boom" de investimentos, divulgando insistentemente, e em geral sem as devidas qualificações, dados sobre o crescimento dos investimentos diretos estrangeiros e das importações de máquinas e equipamentos.
Raramente se esclarece que boa parte desses investimentos estrangeiros corresponde à aquisição de empresas públicas e privadas existentes, não à criação de novos empreendimentos ou à ampliação do estoque de capital no país. Também não se dá destaque ao fato de que a importação de bens de capital substitui, em muitos casos, a produção doméstica desses bens e não sinaliza, portanto, um aumento equivalente do ritmo global de criação de capacidade produtiva no país.
Por último, embora não haja dados completos sobre esse ponto, é de presumir que a persistente e significativa sobrevalorização cambial deva estar levando a uma excessiva concentração de investimentos nos setores "non-tradeables" ou nos "tradeables" favorecidos por esquemas especiais de proteção contra a concorrência internacional, como as montadoras de automóveis.
Por essas e outras razões é que prevalece nos meios técnicos, tanto no país como no exterior, a percepção de que o Brasil ainda está longe de uma trajetória sustentável. Mas o oba-oba que domina grande parte do noticiário econômico-financeiro não permite, em geral, que o público leigo tome conhecimento dessas questões.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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