São Paulo, sexta-feira, 7 de fevereiro de 1997
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Tragédia de "Ondas do Destino" oferta milagre

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de 2h39 diante de "Ondas do Destino", de Lars von Trier, o espectador não saberá se Bess McNeill é uma neurastênica, vítima das ilusões que cria para si mesma, ou, na verdade, uma pessoa que atingiu a santidade.
Não saberá porque a fé necessita do mistério, assim como o homem se defende da dúvida. E o que "Ondas" nos avisa, logo em seus segundos iniciais, quando Bess sorri para a câmera, para o cineasta -ou talvez ainda para quem assiste- é que o enigma será tão doloroso quanto o de Jó, na Bíblia.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 1996, "Ondas do Destino" conseguiu, no mínimo, duas proezas: a primeira, tirar o dinamarquês von Trier do nebuloso território da desconfiança, ele que sempre foi um cineasta que nunca conseguiu uma aprovação razoável.
A segunda, fazer de "Ondas" uma quase unanimidade entre a crítica. Uma aceitação presente tanto na mítica revista francesa "Cahiers du Cinéma" quanto na popular e tão hollywoodiana "Entertainment Weekly", nos EUA.
Para todos, "Ondas" é o cinema de arte sem vício, construído na idéia de que é possível o filme humanista sem ritos brutais de pieguice e ostentação.
Um fascínio que se volta para Bess e sua história. Ela, uma jovem virgem que vive no interior da Escócia, ausente do ruído do mundo nos anos 70.
Ela que não se importa com nada, que recusa sua atenção para Elton John e Marc Bolan nas paradas de sucesso, ou, ainda, a tentação de uma minissaia.
Só abre a brecha para uma paixão. Ama tão intensamente o operário estrangeiro que divide com Deus, na igreja, a ansiedade pela nova vida de mulher casada.
Lars von Trier nos mostra, por uma segunda vez, Bess em seu sorriso; e será a última vez que a veremos em felicidade plena.
Trier exibe seu casamento com uma câmera que treme em cores desbotadas, nos oferecendo a idéia de que estamos em um documentário. Um delirante documentário.
O marido parte para o trabalho, em uma plataforma de petróleo, e Bess (a atriz Emily Watson, bela e genial) cai em desespero. Seu único amigo é a voz de Deus que ela mesma dubla na escuridão.
Bess chora e ora. Quer que seu marido volte, pois não suporta a solidão. Deus ouve e lhe oferece o retorno de um homem inválido por um acidente, incapaz do sexo e do movimento dos membros.
No hospital seu homem lhe diz: "Faça amor com qualquer um, pois só assim eu posso melhorar".
Ela atende porque o ama e nos coloca diante de um enredo facilmente reconhecível para qualquer cristão: a vida daquele que se sacrifica, talvez até a morte, em nome do outro que mais adora.
Trier nós dá, por fim, uma das mais arrebatadoras tragédias de amor. Oferta-nos, no impasse que é hoje o cinema, um milagre.

Filme: Ondas do Destino Produção: EUA, 1996
Direção: Lars von Trier
Com: Emily Watson, Stellan Skarsgard
Quando: a partir de hoje, no Olido, Paulistano e Butantã

LEIA MAIS sobre as estréias de cinema nas págs. 4-6 e 4-7

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