São Paulo, sábado, 8 de fevereiro de 1997
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Mangueira transforma sambistas históricos em deuses na avenida

FERNANDO PAULINO NETO
DA SUCURSAL DO RIO

Na analogia do enredo "O Olimpo é Verde e Rosa", o morro da Mangueira é o monte Olimpo carioca, onde habitam os deuses do samba. Esses deuses são os grandes sambistas que fizeram a história da mais tradicional das escolas de samba e vão desfilar juntos no carro abre-alas no desfile deste domingo.
Um desses deuses, Nelson Sargento, 74, autor do samba-enredo "As Quatro Estações do Ano", campeão de 1963 e considerado um dos mais belos da história da escola, resume o modo como viviam e compunham os deuses mangueirenses.
"Os templos dos deuses do Olimpo verde e rosa eram os botequins da Mangueira", relembra Nelson. Os grandes compositores da escola, como Carlos Cachaça, Cartola e Nélson Cavaquinho, reuniam-se nos bares. E de lá saíam os sambas.
"O samba imperava todo dia no Buraco Quente (local na favela da Mangueira onde foi construída a primeira quadra de ensaios)", diz Nelson Sargento.
Dona Neuma, 74, filha de Saturnino Gonçalves, fundador da escola, lembra que cada bar tinha um prato típico e roda de samba.
"Tinha o angu da tia Efigênia, o Bigorneiro, que só vendia cachaça boa, o Antônio, que era das sardinhas", lembra ela, que, até hoje, gosta "de uma boa cerveja".
Dona Zica, viúva de Cartola, recorda-se que os sambas saíam das conversas de bar. "Um dia, Cartola e o Carlos (Cachaça) andavam pelas vielas da Mangueira quando o sol nascia. O Carlos olhou o sol e disse: 'Alvorada'. Cartola respondeu: 'Lá no morro', e Carlos Cachaça retrucou: 'Que beleza'."
Nascia assim o primeiro verso do clássico samba "Alvorada". Neuma e Zica lembram que eram bem jovens e ficavam em casa ouvindo os bambas fazerem seus sambas. "Depois, quando eles apresentavam os sambas na quadra, a gente já sabia de cor."
"Hoje o Carlos Cachaça virou Carlos Água Mineral", brinca dona Zica. Carlos Cachaça, 94, ainda mora na Mangueira, mas pouco sai de casa. No entanto, estará no desfile como um dos grandes deuses mangueirenses.
Era um tempo antigo, "quando as escolas desfilavam com três sambas", lembra dona Zica. Nessa época, a Mangueira era conhecida pela marcação do samba que, além do surdo, era feita pelo barulho dos chinelos das passistas no chão.
"Quando vinha aquele 'chaque-chaque' dos chinelos, o Paulo da Portela dizia: 'lá vem a mulher de Cartola'."
Os "baluartes" da Mangueira, como são conhecidos na escola os veteranos que desfilarão como deuses do Olimpo verde e rosa, foram escolhidos entre aqueles que mais prestaram serviço à escola.
"A Mangueira é como uma prostituta. As pessoas a exploram bem e depois abandonam. Mas tem aqueles que tiram da sarjeta, dão um banho e botam para brilhar novamente, esses são os deuses da Mangueira", diz dona Neuma, emocionada.
Nelson Sargento lembra que participou da construção da quadra de ensaios da Mangueira. "Fui ajudante de pedreiro, misturei cimento e pintei as paredes", diz. Dona Neuma fala que dona Zica "tirou dinheiro de casa para botar na Mangueira".
"Teve um ano que a gente estava sem porta-bandeira. Fui buscar uma em uma escola de Madureira, vesti e penteei", diz dona Zica.

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