São Paulo, sábado, 8 de fevereiro de 1997
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V.S. Naipaul combate dogmas sobre a Índia

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

V.S. Naipaul, um dos maiores autores contemporâneos de ficção em inglês, nasceu em 1932, em Trinidad, neto e bisneto de imigrantes indianos que deixaram o subcontinente natal nas últimas décadas do século 19, e vive atualmente na Inglaterra.
Com esse "background", não é de estranhar que o tema central de seus romances e contos sejam as ambiguidades e as contradições, as falsas esperanças e os fracassos reais, a corrupção e a violência em que vivem imersas as nações pós-colônias do Terceiro Mundo.
O modo como tratou esses temas tanto em seus romances e contos quanto em sua obra de não-ficção serviu para que muitos o caracterizassem, no mínimo, como conservador e, no limite, como um traidor da causa antiimperialista.
Um caso típico é o do palestino cristão radicado nos EUA Edward Said, que chamou Naipaul de algo que, em tradução, soaria como "preto de alma branca".
Até mesmo gente mais talentosa, no entanto, embarcou nesse tipo de crítica. Por exemplo, quando Naipaul publicou seu brilhante relato analítico de uma viagem feita, na virada dos anos 70/80, a quatro países islâmicos, "Among the Believers" (Entre os Crentes), um resenhista reprovou-o pela sua visão etnocêntrica e preconceituosa do país dos aiatolás, o Irã.
Curiosamente, quem assinava essa resenha era alguém menos que Salman Rushdie, ele mesmo condenado, alguns anos depois, à morte pelo aiatolá Khomeini devido a um livro que o líder iraniano considerava blasfemo e sacrílego.
"Índia, um Milhão de Motins Agora", uma narrativa minuciosa de repórter romancista, escrita entre 88/90, corresponde em boa parte ao que os detratores esperariam de Naipaul.
Em suas mais de 500 páginas (na edição inglesa), o autor retrata os dilemas, conflitos, rupturas e outros problemas variados que assolam e dilaceram a terra de seus ancestrais.
Retomando um livro anterior, dos anos 80, "India, a Wounded Civilization" (Índia, uma Civilização Ferida), o escritor procede, segundo seu método próprio, do particular ao geral, elaborando um imenso mosaico a partir de pequenas unidades, geralmente diálogos com diversos interlocutores, entremeados de descrições e acrescidos de um mínimo de comentário.
A Índia é todo um continente, com uma população mais numerosa que a das Américas, onde se falam cento e tantas línguas e praticam-se, a sério, várias religiões subdivididas em numerosas seitas. Para complicar o quadro, muito do antigo sistema de castas continua funcionando.
Cada qual dessas linhas divisórias -idiomáticas, étnicas, religiosas, sociais etc.- é razão suficientemente para conflitos potenciais, muitos dos quais já se realizaram ou seguem se realizando, como o terrorismo dos sikhs, as disputas sangrentas entre hinduístas e muçulmanos, as reivindicações de autonomia dos povos dravidianos do sul do subcontinente etc.
Não é só isso, porém. A Índia é também uma nação em rápido crescimento econômico, a maior democracia eletiva do planeta (embora obviamente imperfeita), uma civilização cada vez mais urbana...
Ouvindo o que têm a dizer, em cidades como Bombaim ou Madras, hinduístas e brâmanes, muçulmanos e sikhs, tamiles e bengalis, motoristas de táxi, homens de negócios, políticos, poetas, cineastas, jornalistas ou funcionários públicos, Naipaul monta devagar o seu mosaico para chegar, depois, a algumas conclusões que estão meio na contracorrente do que se está habituado ao ouvir.
A ocupação britânica -contra a qual eclodiu, em meados do século passado, o grande "Motim" a que o título faz referência- foi uma humilhação inominável, mas, concomitantemente, transformou uma civilização estilhaçada numa nação relativamente coerente e viável.
Quem quer que veja no complexo processo de interação entre povos e culturas rotulado simplisticamente de colonialismo apenas um mal absoluto perpetrado contra populações idealizadas, só poderá ver nessas conclusões uma abominação.
Talvez sejam, talvez não. Mas derivam de um quadro muito mais rico, instigante e complexo do que aquele que é apresentado, em branco e preto, segundo os dogmas corriqueiros.

Livro: Índia, um Milhão de Motins Agora
Autor: V.S. Naipaul

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