São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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A Disney World ilimitada

JEAN BAUDRILLARD
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

No início dos anos 80, quando o setor metalúrgico de Lorena (França) se afundava numa crise definitiva, os poderes públicos tiveram a idéia de atenuar o colapso criando um parque de entretenimento europeu, um parque temático "inteligente", com o objetivo de infundir um sopro de vida na região.
O parque recebeu o nome de Schtroumpfland. O diretor da siderúrgica falida tornou-se diretor do parque, e os metalúrgicos desempregados puderam trabalhar como "schtroumpfen". Infelizmente, quando também o parque, por motivos diferentes, foi obrigado a fechar suas portas, os ex-metalúrgicos e posteriores "schtroumpfen" voltaram a perder seus empregos.
Triste destino que, depois de tê-los feito vítimas reais do trabalho, os transformou em trabalhadores fantasmas do lazer, para, finalmente, deixá-los desempregados de ambos os setores.
Mas Schroumpfland não passava de uma miniatura. Os empreendimentos da Disney "Illimited" têm outra envergadura. Vocês sabem como o general Schwarzkopf, estrategista da Guerra do Golfo, festejou sua "vitória?". Com uma gigantesca festa em Disney World. Digna conclusão de uma guerra virtual, esses festejos no santuário do imaginário.
Os empreendimentos Disney vão além do imaginário. O grande precursor, o iniciador da realidade virtual do imaginário está em via de apoderar-se de todo o universo real para integrá-lo em seu universo de síntese sob a forma de um imenso "reality show", em que a própria realidade será o espetáculo -o próprio real se torna parque de atrações. Transfusão do real, como uma transfusão de sangue -só que, neste caso, é uma transfusão de sangue real no universo exangue do virtual. Após a prostituição do imaginário, temos a alucinação do real em versão ideal e simplificada.
O virtual polimorfo
A Disneylândia de Los Angeles está sendo reconstituída, de maneira idêntica, na Disney World de Orlando. Como uma espécie de atração histórica de segundo nível, de simulacro em segunda potência. É o mesmo trabalho que o da CNN na Guerra do Golfo -protótipo de acontecimento que não aconteceu, porque aconteceu em tempo real, na instantaneidade da CNN. Hoje a Disney bem poderia retomar a Guerra do Golfo como atração mundial. Na Eurodisney, foram os corais do Exército Vermelho que comemoraram o Natal. Tudo é possível, tudo é reciclável no universo polimorfo do virtual. Tudo pode ser comprado. Não haveria motivo para, no futuro próximo, a Disney não comprar o próprio genoma humano, que está sendo sequenciado, para transformá-lo em atração genética.
Criogenizar o planeta inteiro, exatamente como Walt Disney, o próprio, se fez criogenizar em azoto líquido, enquanto espera não se sabe que tipo de ressurreição no mundo real. Sim, mas não existe mais mundo real e não o haverá nem mesmo para Disney -se, algum dia ele acordar, terá a maior surpresa de sua vida. Enquanto espera, no fundo de seu azoto líquido, ele continua a anexar o mundo -imaginário e realidade confundidos- no universo espectral da realidade virtual, da qual todos nós viramos figurantes. A diferença é que nós entramos na espectralidade viva, enquanto ele, genial antecipador, entrou na realidade virtual da morte.
A Nova Ordem mundial é disneica. Mas Disney não é o único a praticar essa espécie de canibalismo atraente. Pudemos ver a Benetton, em suas campanhas publicitárias, recuperar toda a atualidade do drama humanitário da Aids, da Bósnia, da miséria, do apartheid, pela transfusão da realidade na Nova Figuração midiática, em que a miséria e a comiseração entram em ressonância interativa. O virtual compra o real a preço baixo e o expele tal qual, em forma de prêt-à-porter.
Se essa operação pode dar certo em âmbito tão amplo sem suscitar outra reprovação que a moral e, ao mesmo tempo, suscitar um fascínio universal é porque a própria realidade, o próprio mundo, com toda a sua atividade frenética de clones, já se transformou em performance interativa, em uma espécie de Luna Park das ideologias, das técnicas, das obras, do saber, da morte e até mesmo da destruição -tudo isso próprio para ser clonado e ressuscitado num museu infantil da Imaginação, num museu virtual da Informação.
O contágio do espetáculo
Assim, é inútil procurar vírus de computadores -todos nós fazemos parte do encadeamento viral das redes, e é a própria informação que é o vírus, ainda não sexualmente transmissível, mas bem mais eficaz por via numérica.
Assim, Disney só precisa se inclinar para recolher a realidade tal como ela é. "Espetacular integrado", diria Guy Debord. Mas não estamos mais na sociedade do espetáculo, transformada, ela própria, em conceito espetacular. Não é mais o contágio do espetáculo que altera a realidade, é o contágio do virtual que apaga o espetáculo.
Disneylândia ainda era espetáculo, folclore, com um efeito de distração e de distância, enquanto com a Disney World e sua extensão tentacular trata-se de uma metástase generalizada, de uma clonagem do mundo e de nosso universo mental, não no imaginário, mas no viral e no virtual. Nós nos tornamos não mais espectadores alienados e passivos, mas figurantes interativos, gentis figurantes liofilizados desse imenso "reality show".
A lógica da desencarnação
Não se trata mais da lógica espetacular da alienação, mas de uma lógica espectral de desencarnação -não mais de uma lógica fantástica de diversão, mas de uma lógica corpuscular de transfusão, de transubstanciação de cada uma de nossas células-, portanto, um empreendimento de dissuasão radical do mundo desde o interior, não mais desde o exterior, como no universo hoje quase saudoso da realidade capitalista. O figurante da realidade virtual não é mais ator nem espectador -está fora de cena, é obsceno.
Disney sai ganhando ainda em outro plano também. Não contente em apagar o real, transformando-o em imagem virtual tridimensional, mas sem profundidade, ele apaga o tempo ao sincronizar todas as épocas, todas as culturas, no mesmo "travelling", justapondo-as no mesmo roteiro.
Assim, inaugura o tempo real, pontual, unidimensional, ele próprio destituído de profundidade; nem presente, nem passado, sem futuro, mas sincronia imediata de todos os lugares, de todos os tempos, na mesma virtualidade intemporal. Lapso ou colapso do tempo: eis a quarta dimensão. Aquela do virtual, do tempo real, aquela que, longe de juntar-se às outras três dimensões no espaço real, apaga todas.
A utopia intemporal
Assim, pode-se dizer que, dentro de cem ou mil anos, os peplos antigos serão vistos como filmes romanos verdadeiros, da época romana, como verdadeiros documentos da Antiguidade; que o museu Paul Getty, em Malibu, cópia de uma casa de Pompéia antiga, será confundido, anacronicamente, com uma casa do século 3 a.C. (incluindo as obras que estão em seu interior: Rembrandt, Fra Angelico, tudo confundido no mesmo tempo esmagado); que a comemoração da Revolução Francesa em Los Angeles, em 1989, será confundida, em retrospectiva, com o acontecimento real da Revolução.
Disney realiza "de facto" essa utopia intemporal, produzindo todos os acontecimentos, passados ou futuros, sobre telas simultâneas, misturando inexoravelmente todas as sequências -tais como iriam, ou irão, aparecer para outra civilização que não a nossa. Mas já é a nossa. Pois já nos é cada vez mais difícil imaginar o real, imaginar a História, a profundidade do tempo, o espaço tridimensional -tão difícil quanto era, antigamente, a partir do mundo real, imaginar o universo virtual ou a quarta dimensão.

Tradução de Clara Allain.

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