São Paulo, terça-feira, 11 de fevereiro de 1997
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O pecado está do lado de cima do Equador

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Carnaval nos vê. O Carnaval não é objeto de estudo; nós é que somos, sob seus olhos. É melhor entender o Brasil por meio do Carnaval do que ver o Carnaval como um "desvio" da razão. Como pode o mundo atual achar o Carnaval uma "loucura tropical", este mundo que nos choca com sua "racionalidade" louca e cruel?
O Carnaval prova que o Brasil tem uma forma mais alta de seriedade que a gravidade "civilizada".
O Carnaval mostra a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de "Ocidente" que o país tenta há quatro séculos.
Há uma "orientalidade africana" em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os EUA. O que seria da América sem o "jazz"? Já imaginaram um país branco descascado, cheio de "wasps" tristes?
O Carnaval mostra que o inconsciente está à flor de nossa pele. Já imaginaram um Carnaval na Suíça? Talvez o Carnaval seja uma doença salvadora de que o mundo precisa, antídoto contra a guerra, a velocidade ou o capital cruel.
A "razão perversa" é a razão do Carnaval. Não a perversão do pecado, mas a perversão como mímica de uma liberdade, como a busca por uma civilização "não-civilizada", por um retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.
Sexo santo
O Ocidente tem o "rock". E o rock fala de uma luta pseudotransgressiva, de um vago anarquismo social e não da moleza feminina do Carnaval. O Carnaval é feminino, assim como o rock é de homem. O rock é guerra: o Carnaval é luxo e volúpia.
Lembra que não existe pecado do lado debaixo do Equador. Na razão do Carnaval existe uma coisa mais além da "imoralidade": existe uma "santidade" nessa explosão de carne que não se explica, como não se explica um orgasmo, não se explica uma chuva ou um vento.
Em que lugar do mundo existem essas montanhas de corpos se esfregando, pirâmides de carne sob luzes e música? Onde existe essa união do sexo e música, a não ser no Carnaval brasileiro e no fundo da África?
O Carnaval é um desejo de "indianização" como uma forma de futuro. Não um futuro de atraso ou de caos, mas um futuro como volta à felicidade original.
Essa é nossa liberdade nascida das matas profundas, diferente das surubas calvinistas de Nova York, que deram no sexo torturado e triste e acabaram na Aids.
O Carnaval também não aspira a uma desordem profunda. Há um desejo de ordem debaixo de tudo. O Carnaval é uma utopia do sexo e, como tal, busca atingir um prazer definitivo, a carne além do espaço e do tempo.
No Carnaval há o tesão por uma trepada pré-histórica e essencial que revele todos os segredos.
O Carnaval quer transformar a cultura em natureza. A própria sexualidade do Carnaval tende a ser simbólica. Não há conquista sexual que dê conta dessa fantasia milenar. As mulheres que flutuam no ar dos desfiles estão além do nosso desejo real.
Conquistadas, elas seriam concretas, mortais e não mais as deusas do sexo metafísico. Nosso desejo não quer se realizar no Carnaval. Nosso desejo quer ficar inconcluso, infinito, utópico. As mulheres querem a nudez infinita e os homens também querem ser mulheres, durante o Carnaval. Todos querem ser tudo: os homens querem ter seios e fecundidade e as mulheres querem ser tão ágeis e eficazes na sua sedução como se fossem serpentes de encantar pênis dançantes.
Daí, o travestimento no Carnaval. O travestimento é um procedimento barroco; não existem travestis clássicos. Por isso, o Carnaval também é um paraíso gay.
Essa busca do feminino é também única no mundo. Um mundo machista e violento tem muito a aprender com a mulher do Carnaval, filha das mucamas e escravas lindas com as estrelas de Hollywood. Aliás, uma festa próxima do Carnaval carioca foram os musicais americanos. Busby Berkeley inventou a escola de samba sem saber.
Há um Carnaval dentro de nossa alma que gera uma resistência a entrarmos na chamada "nova ordem mundial". O mundo de hoje é dominado por uma racionalidade protestante, onde os delírios da arte foram transformados em "serviços americanos". Esse pragmatismo vai contra o nosso espírito dionisíaco. Essa resistência a se civilizar é nossa marca registrada.
Mas, mesmo no Carnaval do Rio, a influência da virtualização e da "modernidade" se fez sentir. O "ser" deu lugar ao "ver". O Carnaval oficial das escolas virou uma festa para turistas, inclusive para os brasileiros, turistas de si mesmos. Na avenida oficial, todo mundo vai para ser visto, vendo-se.
Por isso, o verdadeiro Carnaval brasileiro profundo está nas ruas e nos anônimos.
Ali entre eles é que novos sentidos poéticos podem surgir, ali nascem sempre os símbolos dos novos de um fenômeno básico: a cultura popular.
O Carnaval de rua fica longe do populismo que transforma o popular em "kitsch".
E ali estão eles, os anjos de cara suja, os blocos das escrotas, o bloco dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. De alguma forma, esses sujos detêm o segredo e a solução de nossa dor. Essa produção de significados só se dá ali, no meio dos sujos, excluídos de um mundo "clean".
Pela destruição dessa beleza limpa, dá-se a invasão de uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch e Rabelais, passando por Goya, Ensor e Picasso, desaguando no barroco brasileiro do caos colorido.
Alguma coisa muito funda está na loucura desses marginais que dançam dentro da miséria.
Ali estão as três raças brasileiras enlaçadas na esperança da suruba total, de um casamento doido: negros, brancos e índios, dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante, que ensine ao mundo que seu racionalismo é a Morte.

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