São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Plano de avenidas

NABIL BONDUKI

a partir dos anos 20, São Paulo passa a viver problemas urbanos semelhantes aos de hoje: congestionamentos de tráfego, dificuldades de estacionamento, inundações do Tietê, loteamentos irregulares e desordem urbanística. Encerrando duas décadas em que os bondes da Light imperam nas ruas, com eficiência e conforto, os automóveis e ônibus passam a disputar espaço no estreito sistema viário do centro, onde recém-construídos arranha-céus, como o Martinelli, geram mais tráfego.
Para enfrentar tal situação, a Light elaborou em 1927 um projeto de modernização dos bondes, prevendo túneis e vias exclusivas para os veículos -um esboço de metrô, recusado pela prefeitura. Os interesses da indústria automobilística já atuavam. Mas o prefeito Pires do Rio (1926-30) precisa de uma resposta consistente para o problema e encomenda ao engenheiro-arquiteto Francisco Prestes Maia um estudo do sistema viário da cidade.
Surge assim, em 1930, o monumental "Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo", um dos mais importantes planos urbanísticos elaborados no país. É ele o tema deste livro imponente de Benedito Lima de Toledo, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Prestes Maia seguiu uma recomendação de Burnham, autor do Plano de Chicago -"make no little plans" ("nada de pequenos planos")- e fez uma obra grandiosa, sistematizando com habilidade e competência propostas viárias e urbanísticas, no que foi o primeiro estudo de conjunto para São Paulo. O plano respondia à crescente exigência por espaço dos automóveis e estruturava a cidade para viabilizar o crescimento contínuo ao modo da metropolização, industrialização, verticalização do centro e expansão periférica.
O "livrinho" (380 x 280 mm) de Lima de Toledo supõe que "uma imagem vale mais do que mil palavras". E são 328 ilustrações -fotos, cartões-postais, reproduções de aquarelas, desenhos e plantas -muitas inéditas, editadas num projeto gráfico de alta qualidade, que nos leva a uma viagem iconográfica pelo tempo e apresenta visualmente a transformação de São Paulo de meados do século 19 até os anos 40, quando Prestes Maia, prefeito nomeado por Vargas (1938-45), pôde implementar o Plano de Avenidas.
Embora o livro se inclua nas homenagens ao centenário de nascimento do mais famoso ex-prefeito de São Paulo, ele é mais um estudo das transformações da cidade -do seu centro, bem entendido-, e do papel de Prestes Maia neste processo, do que uma reflexão sobre o conjunto de sua obra urbanística, mesmo daquela desenvolvida em São Paulo. O autor, com vários outros livros sobre a cidade neste período, parte de uma análise feita por Maia, em 1954, sobre os surtos urbanísticos de São Paulo, para reconstituir o (conhecido) processo de intervenção da municipalidade sobre o espaço urbano, desde a gestão de João Teodoro (1872-75) até a de Fábio Prado (1934-38), passando, na segunda metade do livro, a apresentar o Plano de Avenidas e mostrar sua execução no tecido de São Paulo.
Não precisaria ir tão longe (e com tantos déjà vus) para contextualizar a obra de Maia. Por outro lado, algumas lacunas causam estranheza, num livro de tantas imagens, plantas e planos. É o caso da ausência do (pouco conhecido) plano da Light, criticado por Maia e rejeitado pelo prefeito Pires do Rio, que representava, na época, uma alternativa ao Plano de Avenidas numa outra perspectiva de desenvolvimento urbano, com prioridade para o transporte coletivo.
Como afirma no preâmbulo, Toledo optou por se limitar ao Plano de Avenidas, sem dúvida uma obra magistral e visionária -mas que vem sendo estudada com profundidade por vários pesquisadores. Revela com precisão a gênese da sua concepção, salientando a influência dos urbanistas europeus Henard e Stübbel e a autoria de Ulhoa Cintra no projeto do Perímetro de Irradiação, idéia forte da proposta. Toledo também resgata a contribuição de Barry Parker, o arquiteto da City que projetou o Jardim América, na concepção do circuito das "parkways" (anel exterior que incluía as marginais do Tietê e Pinheiros), mostrando que o Plano de Avenidas, embora sistematizado por Maia, era resultado, como todo projeto urbanístico relevante, de um processo coletivo de trabalho.
Mas a opção de Toledo acabou por deixar de fora parte significativa da obra urbanística de Maia, pouco conhecida e de grande interesse. Além dos planos realizados em cerca de 20 cidades, como Campinas, Baixada Santista e Recife, sente-se falta de referências às suas idéias urbanísticas expressas em centenas de artigos, conferências, entrevistas e debates em comissões técnicas e, ainda, de suas outras propostas para São Paulo, como na Comissão Orientadora do Plano Diretor (1953), no Plano para o Metrô (1955-56) e no seu segundo mandato na prefeitura (1961-65). É uma lacuna, também, a falta de uma biografia detalhada de Maia, que pudesse elucidar sua desconhecida ação política, como as circunstâncias em que foi indicado por Vargas, sua atuação na Sociedade Amigos da Cidade, que ajudou a fundar e de que foi o primeiro presidente (1935), e suas quatro campanhas eleitorais.
O livro é oportuno para se repensar o processo de desenvolvimento urbano da capital. Surge quando São Paulo sofre obras viárias atomizadas, destinadas ao automóvel -como túneis caríssimos-, sem contar com um plano de conjunto como o de Maia.
Pode-se identificar no Plano de Avenidas um dos momentos cruciais em que se optou pelo transporte individual. Maia defende abertamente a prioridade para abertura das avenidas e o adiamento do metrô, pois achava difícil reformular o centro depois de implantado. Julgava a intervenção no centro indispensável para o desenvolvimento da cidade e, embora não recusasse o metrô, priorizou as avenidas quando teve recursos para obras, no Estado Novo. Em 1955 participou da elaboração de uma proposta de metrô, mas, novamente prefeito em 1961, agora sem recursos, não a executa. Sabe-se o resultado: atraso na expansão do metrô e precariedade do transporte coletivo, que continuam até hoje.
Prestes Maia tem o mérito de ter viabilizado a São Paulo moderna, dos automóveis, da verticalização e do crescimento ilimitado. O Plano de Avenidas antecipou necessidades que este modelo de cidade teria e elaborou uma estrutura, baseada em anéis concêntricos, avenidas radiais e perimetrais, que ainda orienta o atual sistema viário. Quando se fala em anel metropolitano ou se implantam avenidas de fundo de vale, utiliza-se a concepção do Plano de Avenidas. Mas se isto viabilizou (até certo ponto!) a cidade que temos hoje, suscita-nos uma indagação: em que medida tal concepção e as prioridades de então não causaram vários dos insolúveis problemas que temos hoje?
Neste sentido, valeria citar o outro grande urbanista de São Paulo, contemporâneo de Maia, Anhaia Melo, que foi prefeito por breve período (1931) e teve forte influência sobre os urbanistas paulistanos. Anhaia discorda de Maia e, com outra perspectiva de desenvolvimento para a cidade, propunha descentralizá-la, limitar seu crescimento, frear a verticalização pelo zoneamento e evitar obras viárias que estimulassem a concentração. Prestes Maia defendia o adensamento e o crescimento ilimitado, assim como as obras necessárias para viabilizá-los. Para ele, Anhaia queria ananicar a cidade. Mas o que teria sido melhor?
De Maia e Anhaia nascem duas vertentes, com visões opostas de desenvolvimento urbano, que se opõem até hoje nas questões de São Paulo. O presente livro, apesar de suas limitações, é uma bela oportunidade para se refletir sobre o futuro de uma cidade onde, a cada dia, diminui o prazer de viver.

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