São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Manipulações da memória

LAURA DE MELLO E SOUZA

a descoberta da América foi objeto de vários estudos nos últimos anos, tornando-se inclusive palco de debates historiográficos. A coletânea "Entre o Mito e a História" envereda, contudo, por caminho pouco percorrido, questionando o próprio fenômeno da celebração e, por meio dele, procurando melhor compreender os impasses do mundo contemporâneo. Não ignora os debates: arrola-os, dialoga com eles e consegue ultrapassá-los, fazendo um livro originalíssimo, inteligente, instigante, fundamental.
Poucas coletâneas alcançam a harmonia desta. Os capítulos são tematicamente distintos, mas costurados pela análise das múltiplas formas de se manipular a história e a memória do descobrimento, e ainda pela análise das relações entre os processos de aculturação na América e o catolicismo. Neste ponto, enfatiza o comportamento ambíguo e dilacerado da Igreja diante da violência incontestável da catequese, e ressalta sua tentativa cheia de culpa -mas não desprovida de certa malandragem estratégica- em preservar a essência da ação catequética e, ao mesmo tempo, reconhecer as alteridades que tal ação aniquilou.
As celebrações dos 500 anos de descoberta realizadas pela igreja latino-americana, a da Teologia da Libertação, abandonaram o tom miserabilista e ganharam surpreendente coloração antropológica: a igreja dos pobres cedeu lugar à igreja do outro, ensina Paula Montero nos textos que introduzem e encerram a coletânea, mas sobretudo no excepcional capítulo 1, "A Universalidade da Missão e a Particularidade das Culturas".
O grande vencido de todo este processo é o índio: foi quem a catequese primeiro esmagou, é quem hoje se encontra, no Brasil, mais "à margem da história" -se é que a exclusão, com o seu circo de horrores, pode ser hierarquizada. Aqui, a análise capta com habilidade novo jogo de contradições : "A Missão Calada: Pastoral Indigenista e a Nova Evangelização", de Marcos Pereira Rufino, procura destrinchar os meandros que vão da recusa absoluta em comemorar, própria aos grupos mais politizados, às estratégias "antropológicas", que dão nexo à pastoral indigenista e órgãos a ela ligados, como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Do casamento entre a consciência culpada da Igreja e o reconhecimento das especificidades culturais começa a nascer a idéia de uma "igreja índia", a mais tipicamente latino-americana. Rufino adverte que a antropologia é mais complexa do que parece, permitindo, quando muito, falar de uma "Igreja índia no plural". Ora, o reconhecimento da pluralidade das culturas é incompatível com o ideal missionário universalista da Igreja Católica, continua o autor: como contornar o dilema, expresso, aliás, no próprio título do referido capítulo 1?
Catolicismo e catequese embasaram a prática colonial lusitana durante cinco séculos. As exposições coloniais realizadas em Portugal entre os anos 30 e 40 deste século mitificam a saga navegadora de seu povo, e destacam seu caráter catequético e salvacionista, fortalecendo, em última instância, o regime de Salazar. Exaltam a maleabilidade dos portugueses como colonizadores: eles reconheceriam a diversidade cultural mais do que outros senhores de impérios. A questão é cabeluda, e o capítulo 5, "O Mundo Que o Português Criou", de autoria de Omar Ribeiro Thomaz, não a resolve, mas acrescenta elementos ao debate (já enunciado no título, evocativo da obra de Gilberto Freyre e de seu lusotropicalismo). Os parágrafos finais são belíssimos, discutindo de forma sensível e original esta famigerada tolerância portuguesa.
No livro há um outro ótimo capítulo escrito pelo mesmo autor, "A Reinvenção de Comunidades: o 5º Centenário e os Nacionalismos na Espanha". O eixo comum com os demais não é a religião, mas o imperialismo e a relação contraditória que as minorias -bascos, catalães- estabelecem com a efeméride. Generalizando um pouco, caberia dizer que, na Espanha, tais grupos radicais fazem as vezes dos índios no Brasil.
O último capítulo, "Caminhos da Memória, Trilhas do Futuro: Os Dilemas de um Projeto de Democracia Cultural", escrito a quatro mãos por Paula Montero e Marisa Paulavicius, apresenta, como o primeiro, excepcionais momentos de reflexão. Discorre sobre certos impasses que se criam quando o universo da política -no caso, a prática da Secretaria da Cultura de São Paulo durante a gestão petista- incorpora o discurso crítico da produção científica. Estilhaçando o conceito de Estado e de nacionalidade, eventos e debates ocorridos naquela época não deixam, contudo, de instituir uma outra totalidade: "...se a Exposição Pátria Amada Esquartejada pretende denunciar a ilusão que se esconde por detrás dos mitos nacionais, como o herói Tiradentes, não seria difícil demonstrar que esta mesma 'ilusão' se repõe quando se quer mostrar o 'verdadeiro' índio ou o 'verdadeiro Brasil"'.
Há alguns escorregões no campo da história e da geografia: não se pode falar de "ocupação da América, mesmo a brasileira" (pág. 90), porque só existiu Brasil na América após 1822, e quem ocupou a porção de terra que depois assim se designou foram os portugueses. Os países ibéricos são dois, e não três, como se diz à pág. 267. No capítulo 4, é frágil e um tanto ingênua a tentativa de análise da historiografia sobre Colombo.
Ressalvas à parte, trata-se, no conjunto, de um trabalho verdadeiramente interdisciplinar, associando com propriedade história e antropologia, e ainda mais louvável por tratar-se do resultado de uma pesquisa de grupo, no qual a maioria dos participantes é composta por alunos de graduação, mestrandos e doutorandos. Uma empreitada realmente louvável, e que deve servir de exemplo.

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