São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A quaresma e a política

JOSÉ SARNEY

Paris - Muitos julgam que a política tem muito de Carnaval. De blocos organizados e de cordões desorganizados. E hoje, em muitas comemorações e atos partidários, desfilam blocos carnavalescos.
Acho que muito mais que Carnaval a política tem a ver com quaresma. É que a política convive com o poder, e o poder, sendo permanente, para as pessoas é efêmero. Ele fica e os políticos passam. A glória política vive de instantes e do brilho de alguns gestos.
Nos Parlamentos, é um aparte que fica célebre, um projeto que se aprova, um discurso que se faz, um parecer que se escreve. Depois, desaparece o cenário e tudo isso cai no vazio.
Quem lê velhos debates parlamentares, que a história consagra como memoráveis, tem uma decepção. São menores do que os instantes em que existiram. Falta o clima.
O discurso parlamentar guardado nos anais é de uma grande solidão. Certa vez fui ler (e como foi difícil descobrir) um famoso discurso de José de Alencar sobre as leis da Regência, já pairando no ar a influência do conde D'Eu sobre a princesa Isabel, e tive uma grande decepção, que cheguei mesmo a não concluir a leitura.
Por isso mesmo, o general Golbery, com sarcasmo, reagindo à revolta de uma alta patente militar da Revolução de 64 contra um pronunciamento de determinado parlamentar, tranquilizou-a: "Fique tranquilo, não tem importância. Quando você quiser guardar um segredo, coloque nos Anais da Câmara ou do Senado, porque segredo só não conta quem não sabe, e nesses Anais ninguém sabe".
Por que a quaresma é melhor do que o Carnaval para a meditação dos políticos? Porque com o tempo, dos políticos, o geral é não restar senão lembranças das cinzas. Santo Agostinho, citado por Vieira, lembrava e perguntava: "Onde estão os imperadores e capitães, os Césares e os Pompeus, os Augustos e os Tibérios, os Vespasianos que mandaram no mundo?" E ele mesmo respondia: "Nunc omnia favillae". Tudo cinza.
E o próprio Vieira, para recordar que não só o poder político se extinguia, mas, também, o poder dos papas, afirmou: "Pó foram Urbano, Inocêncio, Alexandre, e em pó está se desfazendo Clemente" (o papa que morrera fazia, então, pouco tempo).
Por tudo isso é que humildade deve ser uma das grandes virtudes de quem lida com o poder, principalmente dos políticos, estes homens que por definição constituem um grupo de pressão dentro da sociedade que não deseja influenciar o poder, mas exercer o poder.
Esse exercício, a sociedade exige e a democracia é feita para isso, deve ser usado exclusivamente em benefício do povo, consciente da responsabilidade moral e dos valores éticos que devem nortear a política.
Assim, depois do Carnaval, os políticos devem estar lembrados que a vida pública não é uma festa e que os nossos destinos estão consagrados a ser, como de todos os homens, uma lembrança da quaresma, que pode ser boa ou cinzas.

Texto Anterior: O STF e a liberdade
Próximo Texto: ESPÍRITO COMUNITÁRIO; BEM-VINDA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.