São Paulo, sábado, 15 de fevereiro de 1997
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Waltercio Caldas coloca novo foco em Velázquez

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

O artista plástico Waltercio Caldas, o representante brasileiro na última Bienal de São Paulo (1996) e também na última Documenta de Kassel (1992), se uniu a Velázquez, um dos ícones da cultura hispânica, para conquistar o público da Arco 97. O evento, uma das três maiores feiras de arte contemporânea do mundo, acontece em Madri até a próxima terça-feira.
Também artista gráfico, Waltercio trabalhou com computação gráfica para "esvaziar" cerca de 60 trabalhos do artista espanhol e criar seu livro "Velázquez". Desfocados, os ambientes aparecem como cobertos por um véu. Mesmo os textos explicativos são simulados por manchas gráficas.
Clássicos como "As Meninas" e "Retrato do Papa Inocêncio 10º" entraram, mas "A Rendição de Brera" ficou de fora. "Os personagens ocupam tanto a tela que seria necessário inventar muito o fundo para retirar os personagens", explicou o artista em entrevista à Folha, por telefone, de Madri.
O livro deveria estar pronto para a Bienal, mas atrasou. "Foi bom, pois ele poderia ter sido confundido com o tema da Bienal: a desmaterialização da arte", disse.
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Folha - Quanto tempo levou o processo de confecção do livro "Velázquez"?
Waltercio Caldas - Esse projeto começou com um livro que eu fiz em 78 chamado "Matisse e Talco". Era um livro do Matisse que pulverizei com talco comum. Nele, você via as imagens através desse filtro.
A idéia do "Velázquez" é como se fosse o resultado de dois aspectos. Uma é a extrema complexidade com que ele estruturava o fundo de seus quadros, ao ponto do filósofo Ortega y Gasset dizer que existiriam dois pintores em Velázquez, um que pintava os fundos e outro que pintava as figuras.
A minha intenção foi mostrar que se tratava do mesmo pintor, pois o fundo estaria tão estruturado quanto seus personagens. Em Velázquez tudo é figura, e o meu trabalho foi ver como o pintor trabalhou essa questão da orientação figurativa no plano pictórico.
Velázquez surgiu em uma época em que Ticiano e Caravaggio já haviam quase esgotado o assunto da composição e da luz. Mas ele acrescenta uma consciência nesse espaço pictórico. Usava temas em que poderia demonstrar a espacialidade do ambiente.
Velázquez podia usar uma mesa para justificar a perspectiva, poderia usar o reflexo de um espelho representado para colocar o olhar do espectador dentro desse quadro. Alguns de seus personagens olham para fora do quadro. Ele é um dos primeiros a colocar para dentro o que está fora desse quadro.
Um outro aspecto que acho fundamental foi ter trabalhado com o objeto livro, que está paralisado no campo da percepção.
Velázquez tinha uma relação muito forte com a questão da reprodução técnica, se você considerar a questão da reprodução técnica como se ela fosse um espelho em um outro grau.
Folha - A supressão da figura teve a intenção de desvincular o pintor de seu período histórico?
Caldas - Eu acho que as questões de representação que Velázquez trabalha ainda estão vigentes. Em uma época em que as pessoas acreditam nas imagens televisivas e eletrônicas, a tendência é acreditar muito mais nas imagens representadas. Naquela época ainda existia um desvínculo entre a representação e o real que hoje se escamoteia.
Velázquez dizia que não pintava uma rosa, mas um borrão que se parecia com uma rosa. Acho que, na civilização das imagens em que vivemos hoje, essa questão ainda é mais escamoteada. A ilusão das imagens está mais verossímil do que nunca. Essas questões tendem a continuar. Acho que ele é atual pois a questão é atual, mas foi negligenciada pela alta tecnologia.
Várias questões do livro "Velázquez" estão incorporadas em algo que me interessa que é a reprodutibilidade técnica, esse elemento que é intermediário entre você e o mundo real.
Folha - Você já disse que a matéria mais utilizada pelo artista seria a história da arte. Esse livro é a confirmação disso?
Caldas - Sem dúvida. Hoje mesmo eu estava pensando em como a informação sobre história da arte é dada sem hierarquia. A tendência é você ver a arte como uma soma de contextos distintos. É como se o tempo aproximasse as coisas.
Estamos incrementando a velocidade de percepção desse fluxo histórico. Isso sempre me interessou, pois sempre tive a convicção de que a arte fosse um fluxo em que um artista só pode existir pois outro existiu antes.
Vejo meu trabalho da mesma maneira. Cada um que considero bem-sucedido dentro de meu projeto é um trabalho que me permite alterar os limites dos trabalhos anteriores. Cada um novo deve mexer com o terreno anterior e, ao mesmo tempo, criar uma possibilidade nova para o que virá. Para mim, a função da arte é criar mais arte. Você não pode fazer com que a obra anterior durma. A nova tem que manter as outras acordadas.
Folha - O que a participação em uma evento como a Documenta de Kassel causa a um brasileiro?
Caldas - É lamentável que artistas brasileiros, talvez por descaso do próprio país, não estejam frequentando há muito tempo eventos desse porte. O meu trabalho na Documenta foi adquirido para ficar na exposição permanente no museu de Kassel. Foi muito bom.
A Documenta é um passo, não um degrau na carreira de um artista. O problema é que, quando se trata de uma situação cultural permanente, como na Europa, um passo é significativo, pois estabelece uma referência. No Brasil, temos a sensação que estamos começando a cada ano.

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