São Paulo, terça-feira, 18 de fevereiro de 1997
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Cadê o Cade?

LUÍS PAULO ROSENBERG

O que há em comum entre as declarações de FHC -de que a abertura econômica brasileira foi muito rápida- e o Carnaval passado por 20 parlamentares na Europa, à custa de corretoras e seguradoras brasileiras?
E o que têm a ver a declaração das montadoras de que interromperão seus investimentos no Brasil se as quotas concedidas a carros importados forem prorrogadas, a recente divulgação do novo ciclo de aumento dos automóveis nacionais e a indignação dos distribuidores autorizados de veículos com tal decisão?
São ilustrações para um debate recorrente: o protecionismo, que é apresentado como um ato de pragmática defesa do emprego nacional, no final resulta em formação de bando, quadrilha ou cartel para assaltar o bolso do consumidor.
Comecemos pelas declarações presidenciais na Europa. Se ele estiver sugerindo uma nova postura negocial, em que cada diplomata brasileiro no exterior transforme-se num mascate a divulgar as qualidades dos nossos produtos nos países onde está servindo, parabéns. Seria uma virada em relação à situação atual, em que um embaixador brasileiro é pilhado aqui no papel de lobista de uma empresa estrangeira e, mesmo assim, é nomeado para um dos mais cobiçados postos da carreira.
Abertura pragmática, portanto, seria fazer corresponder ao processo de abertura da economia brasileira uma ação mercadológica governamental construtiva, rompendo barreiras de outros países, promovendo feiras no exterior com nossos produtos e organizando caravanas de empresários brasileiros para agredir o mercado internacional. Jamais reverter o processo de abrir nossos mercados à concorrência, tornando o consumidor brasileiro cativo de empresas aqui instaladas, na esperança de que bilhões de dólares em novos investimentos viriam, em decorrência do protecionismo. Num mundo globalizado, vantagens comparativas autênticas, regras coerentes e duradouras atraem mais fábricas do que subsídios e vantagens artificiais, que inexoravelmente acabam sendo revogadas pela lógica da democracia.
Daí ser louvável a indignação da imprensa com a boquinha dos deputados e senadores excursionando pela Europa, à custa do setor de seguro, que teme a entrada livre de concorrentes estrangeiros, diminuindo prêmios, aumentando a qualidade de serviços e comprimindo-lhes as margens de lucro. Aceitar mordomias que podem produzir conflitos de interesse no futuro já é pecado, mas venial. Votar leis que protejam as empresas aqui instaladas da concorrência internacional seria pecado capital, por viabilizar a curra do consumidor nacional pelas seguradoras locais.
A evidência mais eloquente dessas relações incestuosas aparece no comportamento recente da indústria automobilística.
Aprovada a política automotiva, elevando a alíquota do Imposto de Importação de 30% para 70%, mas deixando a brecha de que as montadoras aqui instaladas poderiam importar à alíquota de 35%, o oligopólio local livrou-se da ameaça da concorrência estrangeira. Desde então, os preços dos automóveis nacionais não pararam de subir: quase 50% nos populares, contra algo perto de zero para os demais bens de consumo industrializados.
Os produtores mundiais excluídos desse regabofe que contraria acordos internacionais de comércio firmados pelo Brasil contra-atacaram, almejando nossa jugular. Na busca de um entendimento, em vez de reduzir de novo as alíquotas em geral, partimos para o jeitinho: criamos por um ano uma quota de importações correspondente a cerca de 10% do mercado interno à alíquota de 35% para os excluídos da lei atual, um cala-a-boca para ganhar tempo sem sofrer retaliações do resto do mundo.
Assim conseguimos passar um ano: as montadoras locais enchendo as burras e prometendo bilhões de investimentos no futuro, enquanto o resto do mundo pleiteava a volta da liberdade de comércio.
Vencido o prazo das quotas, o governo divulga a prorrogação delas, obedecendo ao velho provérbio gersoniano de que não se resolve hoje o que puder ser deixado para amanhã.
Pois não é que, mesmo assim, o cartel, por meio do presidente da Anfavea, revelando o temor da qualidade a preços baixos do importado, teve o desplante de chantagear o governo, ameaçando com o cancelamento dos seus investimentos programados se for prorrogado o prazo das escassas importações permitidas pelas quotas?
E para mostrar que poder de monopólio existe para ser exercido, divulgaram mais aumentos, de até 4% nos preços dos veículos, numa pungente sintonia de ação entre as montadoras. Em economias que levam a sério suas leis de defesa do consumidor, essa sintonia já seria o suficiente para que os respectivos presidentes vissem o sol nascer quadrado no dia seguinte aos aumentos.
O ato digno neste episódio todo é a ação corajosa de Sérgio Reze, presidente da Fenabrave, que representa os comerciantes de automóveis. Como no varejo a concorrência é um fato, os revendedores sabem qual será a reação do consumidor ao aumento e botaram a boca no trombone, denunciando a abuso de poder econômico implícito na última fornada de reajustes de preços da indústria.
De volta de seu giro poliglota pela Europa, onde se situará o presidente: do lado do cartel das montadoras, em nome do protecionismo responsável, ou na defesa dos consumidores e do seu sonho do carro próprio, em nome do bom senso e da modernidade?

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