São Paulo, terça-feira, 18 de fevereiro de 1997
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FHC e o fenômeno cesarista

MODESTO CARVALHOSA

Passadas algumas semanas do embate decisivo em torno da reeleição de FHC, não se viu nenhuma reflexão mais profunda sobre esse fenômeno transcendental na história brasileira. Os críticos, mesmo os mais autorizados, refugiam-se, superficialmente, em considerações de moral política (fisiologismo, oportunismo, narcisismo, ilegitimidade e cesarismo).
Por outro lado, os áulicos da unção presidencial lançam artigos nos jornais que demonstram ignorância total do alcance do que estão apoiando. Não entenderam deputados e senadores governistas que estão nos levando a uma nova etapa na política.
E, com efeito, a reeleição de FHC não tem precedentes em nossa história. Inaugura-se um processo político inteiramente novo: o propalado cesarismo, nos moldes do gaullismo e do bismarckismo. E o que seria esse moderno cesarismo?
Trata-se de um direito de permanência renovável no poder, outorgado a determinado chefe de governo, revestindo-o de relativa autonomia face às forças sociais e políticas que o apóiam, visando promover rupturas capazes de levar o Estado e o país à modernidade.
Espera-se que o líder, em um período dilatado, traga a modernização, porém em termos regressivos, porquanto não deverá o processo representar ruptura em relação ao passado, mas sim uma aceleração histórica no âmbito desse mesmo conservadorismo (Gramsci).
No caso brasileiro, o cesarismo recém-instalado visa exatamente isso: lutar contra o Estado empresário, paternalista e burocrático (Weber), para em seu lugar instalar um regime neoliberal e um aparelho estatal operado com critérios gerenciais (Bresser Pereira), tudo visando inserir o país no inelutável processo de globalização. É a repetição do bismarckismo, que tardiamente modernizou o Estado germânico, frente à já instalada industrialização da Europa.
Por outro lado, esse cesarismo contemporâneo impõe certo grau de quebra do sistema político, a favor de determinado líder que já esteja no poder (FHC, Menem, Fujimori) ou que para ele seja trazido sob condições hegemônicas (De Gaulle, 1958).
Em todos esses casos, mudam-se as regras constitucionais em função de uma determinada pessoa, favorecendo-a para que assuma esse processo histórico de ruptura conservadora. Esse neobonapartismo entre nós é tão flagrante que, para FHC, haverá reeleição continuando no cargo; já para os governadores e prefeitos, apenas reelegibilidade, devendo desincompatibilizar-se seis meses antes do pleito.
O cesarismo moderno distingue-se do populismo e da ditadura. Do primeiro porque não se funda num regime de massas, sendo, pelo contrário, profundamente elitista e iluminado, dispensando a participação da sociedade civil (Bobbio).
Não se pode imaginar um cesarismo que não seja esclarecido e, por isso, auto-suficiente. E não se trata de uma ditadura, porque são garantidos as liberdades públicas e os demais direitos constitucionais, que, assim, possibilitam a futura transição de volta a um regime democrático despersonalizado (renúncia de De Gaulle em 1969).
Convém ainda notar que o atual cesarismo goza de uma considerável autonomia no confronto com as forças políticas que o apóiam. Governa-se por medidas provisórias, dispensando-se até a função homologatória do Congresso, face à possibilidade de reedição contínua daqueles atos de império.
A propósito, lembra Tocqueville que o cesarismo constitui uma democracia totalitária, ou seja, um tipo de organização em que uma série significativa de poderes intermediários (partidos, sindicatos) progressivamente perde importância, com o correspondente aumento do poder do chefe da nação.
Questiona-se a legitimidade desse regime democrático de feição cesarista. Sob o ponto de vista histórico, trata-se de fenômeno encontrado em inúmeras democracias atuais. Nos EUA ressalta a figura de Roosevelt, que, rompendo a tradição política, gastou quatro mandatos para reconduzir o país à sua capacidade produtiva e auto-estima ("New Deal") e, depois, ao esforço de guerra. Completaria certamente 20 anos de presidência (cinco mandatos) se não tivesse falecido, em 1945.
É bom lembrar que os césares contemporâneos vêm efetivamente tentando impor uma ruptura conservadora diante de grave impasse socioeconômico como o nosso, sem, no entanto, suprimir as liberdades públicas. É o mínimo que esperamos de FHC, que sabe muito bem o que está ocorrendo com ele e com a nação, agora sob seu pessoal comando.

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