São Paulo, quinta-feira, 20 de fevereiro de 1997
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A moratória de 1987

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Toda nação passa por situações-limite, por momentos em que ela é chamada a tomar e sustentar decisões arriscadas. O Brasil é um país capaz de enfrentar desafios desse tipo? Eis aí uma questão difícil e dolorosa, que não pretendo voltar a discutir hoje.
Mas em fevereiro de 1987 estávamos diante de uma dessas situações-limite. E a moratória unilateral, decretada há exatamente dez anos, era na ocasião a única resposta consistente com a defesa da independência do país.
Transcorrida uma década, não tenho razões para modificar a avaliação desse episódio, que apresentei em livro publicado pouco tempo depois ("Da Crise Internacional à Moratória Brasileira", editora Paz e Terra, 1988).
Tendo sido um dos responsáveis por essa decisão controvertida, falta-me naturalmente isenção para comentá-la. Por outro lado, e pela mesma razão, tenho do assunto um conhecimento um pouco maior do que o da grande maioria dos que se dispõem a comentá-lo, valendo-se não raro de atitudes levianas e subalternas.
Para avaliar a moratória é fundamental ter em conta as circunstâncias da época. O Plano Cruzado, lançado um ano antes, levara a uma forte expansão da demanda interna e a uma apreciação real da taxa de câmbio. Era uma conjuntura até certo ponto parecida com a da fase inicial do Plano Real, entre meados de 1994 e início de 1995, embora a valorização cambial do cruzado tenha sido bem menos intensa do que a do real.
Mas a diferença fundamental era outra. O programa liderado por Dilson Funaro não tinha a possibilidade de financiar desequilíbrios de balanço de pagamentos com capitais externos.
Desde 1982, os mercados financeiros internacionais estavam fechados para o Brasil. A intransigência dos credores, que sempre insistiam em impor acordos draconianos, obrigava países como o Brasil a realizar enormes transferências de recursos reais ao exterior, com grave prejuízo para a estabilidade e possibilidades de desenvolvimento de suas economias.
Nesse contexto, o Plano Cruzado teve como consequência uma queda substancial do nível de reservas internacionais do Brasil. O risco que corríamos era o de nos vermos novamente na situação de 1982-83: sem reservas e obrigados a aceitar passivamente as imposições dos credores.
A suspensão de pagamentos teve, assim, dois objetivos. O primeiro era estancar a perda de reservas e, na sequência, permitir a sua recuperação gradual. Esse objetivo foi logo alcançado, já em 1987.
O segundo objetivo, mais ambicioso, era pressionar os credores a aceitar uma mudança nos termos da negociação da dívida. Para alcançá-lo, a moratória fora decretada unilateralmente e por prazo indeterminado. A retomada de pagamentos ficara expressamente condicionada a avanços no processo de negociação.
Como seria de se esperar, a reação nos meios financeiros internacionais foi de desagrado e preocupação. Mas em muitos círculos no exterior, inclusive no meio bancário, prevaleceu a percepção de que o passo dado pelo Brasil modificaria inevitavelmente os rumos da crise internacional da dívida.
Paul Krugman, um dos mais conhecidos economistas norte-americanos da nova geração, em livro publicado em 1988 com Maurice Obstfeld, referiu-se nos seguintes termos à moratória brasileira: "Em fevereiro de 1987, o Brasil atordoou o mundo ao suspender unilateralmente os pagamentos de juros sobre a sua dívida com bancos comerciais por um período indefinido. No momento em que escrevemos, as consequências últimas da ação do Brasil ainda não estão claras. Outro devedores importantes não seguiram o exemplo do Brasil. Contudo, alguns credores bancários (liderados pelo Citicorp em maio de 1987) decidiram aumentar de forma acentuada as suas provisões contra créditos duvidosos. Essas ações envolveram grandes perdas contábeis e a admissão tácita pelos bancos de que eles não esperam o repagamento integral."
Essa admissão tácita abriria caminho, ainda que não imediatamente, para modificar os acordos de reestruturação das dívidas. O equacionamento do problema, que aconteceria nos anos 90, só não foi mais rápido e mais favorável ao Brasil porque faltou aos governos brasileiros capacidade e determinação de aproveitar plenamente as oportunidades de negociação propiciadas pela suspensão de pagamentos.
Durante a desastrosa gestão de Mailson da Nóbrega, no Ministério da Fazenda, o Brasil rendeu-se às exigências dos bancos credores. Em 1988, os pagamentos chegaram a nada menos que US$ 20,3 bilhões entre juros e amortizações, com o único benefício visível de melhorar a reputação pessoal dos responsáveis por esse feito nos círculos financeiros internacionais.
Os acordos assinados na ocasião não duraram mais que alguns meses. Já em 1989, ainda na gestão Mailson, o Brasil voltava, envergonhado e desmoralizado, à suspensão de pagamentos.
Vale a pena recordar isso tudo? Há pelo menos uma razão importante para fazê-lo. Não se deve perder de vista que as sementes da moratória de 1987 e da longa crise da dívida externa que a antecedeu foram plantadas nos anos 70, época em que o Brasil se iludia com a farta disponibilidade de capitais externos.
Agora que o Brasil foi lançado em mais um ciclo de endividamento, agora que se deposita novamente grande confiança na possibilidade de depender intensamente de dinheiro estrangeiro, convém não esquecer o sofrimento e as agruras que experimentamos, nos anos 80, como consequência de excessos e imprudências cometidos no período de liquidez internacional abundante da década de 70.
Convém, também, não estigmatizar irrefletidamente decisões que, embora drásticas, foram necessárias em sua época e podem voltar a sê-lo, se e quando os excessos e imprudências de hoje desembocarem em nova crise de endividamento.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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