São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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A utopia de José Agrippino

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É preciso evitar o discurso moralista ou saudosista, mas uma grande diferença separa os escritores que eram novos em 1967 e a maioria dos que o são 30 anos depois. Em 67 era comum que um jovem escrevesse no Brasil -ou fizesse música, teatro ou cinema- para marcar a diferença, originalidade, sua e de seu tempo, um tempo aliás especial, reunindo e confrontando num paradoxo histórico ditadura militar e utopias. Fazia-se radicalmente arte, e se a grana entrava era um bônus e não a razão de ser.
Hoje, ressalvadas as exceções germinando nas catacumbas (algumas, felizmente, terminam por vir à tona), o mais comum é ver um escritor, mesmo talentoso -ou talvez fosse melhor dizer, competente- começar sua carreira com um olho no mercado. Valoriza-se a literatura de gêneros, como o policial, o histórico, as biografias, o erótico e até o esotérico, havendo quem rotule o procedimento, à vontade no novo liberalismo mundial, de pós-moderno, cinicamente ou não.
Não era mesmo assim em julho de 1967, quando foi lançado, com esmero quase artesanal, pela Editora Tridente, trazendo na capa uma brilhante síntese neofigurativista-pop de Antônio Dias, o livro "Pan América", de José Agrippino de Paula, um jovem e meteórico gênio que já servira ao leitor atento o biscoito fino de "Lugar Público" (Civilização Brasileira, 1965).
"Pan América" é um livro espetacular em todos os sentidos, inclusive o literal, da palavra. Uma epopéia na primeira pessoa, em que um diretor de cinema, que jamais se nomeia além de um Eu onipotente, filma em Hollywood a supercatastrófica superprodução "A Bíblia", o que levou Eveline Hoisel a intitular sua tese-livro sobre Agrippino de " Supercaos". Obra que recomendo muito mais do que estas poucas palavras que me cabem.
Mas vamos lá. No escrito de JAP se presentificam exemplarmente, numa linguagem exasperadamente reiterativa e antipsicológica (como um " nouveau roman" que não fosse chato), as mitologias do grande espetáculo de uma época: político, revolucionário, artístico e, obviamente, o cinematográfico, que resume e devora tudo, criando uma supra-realidade, que aliás é boa parte da realidade mesma de gerações criadas nas salas de cinema, antes do império da TV. Mas, com um ou com outra, de pão e ficção vive o humano.
E, na ficção de Agrippino, superestrelas, além de uma multidão de extras, representam os grandes eventos e personagens de uma Bíblia hollywoodiana. Burt Lancaster é o Anjo do Senhor; John Wayne, o faraó egípcio; Cary Grant, Moisés; Yul Brinner, Deus!, e Marilyn Monroe, em papel duplo, Sara e Betsabá. Representam todos também a si próprios, enquanto mitos, e passeiam ainda pelo livro Sophia Loren, Brigitte Bardot, Marlon Brando, o Pato Donald, James Dean, os Beatles etc., além dos que protagonizaram os grandes espetáculos fora das telas, como Winston Churchill, Kennedy, Lyndon Johnson, De Gaulle, Hitler, Che Guevara, Ghandi, Don Quixote (!), Karl e Harpo Marx, Arthur Miller e o superastro do beisebol Joe Di Maggio (maridos de Marilyn). Estão todos lá, norteados pela bússola do autor para um apoteótico caos final.
Mas "Pan América" é um livro que eu chamaria também, me lixando para o Aurélio, de pansexual. Um erotismo desenfreado que converge o tempo todo para a grande sacerdotisa do sexo americano: Marilyn Monroe. E me permito reproduzir aqui um pequeno trecho de um texto do livro, já clássico no "boca a boca", recentemente publicado na revista "Item", do Rio de Janeiro.
"EU E ELA ESTÁVAMOS ALI ENCOSTADOS NA PAREDE. Ela estava em silêncio e eu estava em silêncio. Eu sentia o corpo dela junto ao meu, os dois seios, o ventre, as pernas, os seus braços me envolviam... Eu ajoelhei segurando o meu membro rijo latejante e aproximei a cabeça vermelha do meu membro do sexo de Marilyn, e ela encolheu mais as pernas junto ao corpo e abriu com os dedos as peles que formavam os lábios do seu sexo..." E assim por diante, em muitos episódios e páginas.
Subliteratura? Não: superliteratura (a fronteira pode ser tênue, bicho). E a primeira frase do parágrafo acima, em maiúsculas, foi incorporada como letra e título de uma composição de Gilberto Gil, no disco "Doces Bárbaros". E nas milhões de vezes -ontem, hoje e sempre- que alguém puser para tocar "Sampa", de Caetano, e ouvir a frase: "Panaméricas de Áfricas utópicas", estará captando uma mensagem-homenagem do nosso maior cantor-compositor àquele que, junto com Jorge Mautner, foi um rompedor de limites na literatura brasileira dos anos 60. Assim, enquanto não se reedita dignamente "Pan América", este clássico com sua eterna juventude, Zé Agrippino, recolhido aos mistérios do seu atual silêncio, de todo modo vive.

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