São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Quem vai para o trono?

DANIELA FALCÃO
FOTOS XANDO PEREIRA

"Apesar de ter nascido e vivido até a adolescência dentro de uma casa de candomblé, nunca pensei em ocupar cargo algum"
"Será quem Deus e os orixás decidirem. Serei substituída por alguém da família"
"Procuro lembrar meus seguidores de quem nos ajuda. Não obrigo ninguém, só advirto"
Não é só a Inglaterra que enfrenta problemas sucessórios. A titular do trono brasileiro -uma cadeira de espaldar preto, ladeada por dois grandes vasos com galhos de arruda- também está com dificuldades de encontrar seu herdeiro.
"Sua majestade" mora na Bahia, em uma casa branca no meio de uma comunidade pobre, e é chamada de "mãe". Ela é Cleusa Millet, uma senhora de 65 anos, 100 kg, óculos de lentes grossas, fala e andar arrastados.
Comparar mãe Cleusa a uma rainha parece exagero, mas não é. Cleusa, no comando do Terreiro do Gantois, principal casa de candomblé do país, é a mulher mais importante da Bahia hoje.
Batem à sua porta diariamente políticos, músicos, atores e empresários. No Carnaval, aproveitando a passagem por Salvador, foram ao "beija-mão" no Gantois o casal Caetano Veloso e Paula Lavigne, Edson Celulari, Guilherme Leme e Marisa Monte.
Como a rainha da Inglaterra, mãe Cleusa tem seguidores "à esquerda" e "à direita". O presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), e seu conterrâneo, o deputado petista Jacques Wagner, consultam-se regularmente com ela. Inimigos ferrenhos no terreno profissional, os publicitários Nizan Guanaes (da DM-9) e Eduardo Fischer (da Fischer & Justus) também concordam quando o tema é candomblé.
Sua influência chega bem próximo ao Palácio da Alvorada -durante a campanha presidencial, o ministro das Comunicações, Sérgio Motta, recebia patuás (amuletos) benzidos por ela- e extrapola os limites nacionais: Cleusa tem filhos-de-santo africanos, alemães e franceses.
Como a rainha Elizabeth, Cleusa teve de superar o carisma da mãe para se impor. Elizabeth 2.a é filha da "rainha-mãe" Elizabeth, que, aos 97 anos e no meio da maior crise da história da monarquia inglesa, continua sendo unanimidade nacional.
Cleusa é filha da lendária Maria Escolástica de Nazaré, a mãe Menininha. Mesmo os mais analfabetos nos rituais africanos são capazes de cantarolar os versos "ê, minha mãe, minha mãe Menininha; ê, minha mãe, Menininha do Gantois", de Dorival Caymmi.
Aos 28 anos, mãe Menininha assumiu o terreiro e ficou no poder até morrer, aos 92 anos. Foi a mais venerada ialorixá de todos os tempos (leia texto na pág. 14). As comemorações de seu centenário em 94 pararam a Bahia por quatro dias.
Hoje, segura no reinado do Gantois, Cleusa enfrenta problemas sobre quem vai sucedê-la. Os obstáculos no caso não são escândalos sexuais como os ingleses, mas a rebeldia da "princesa", a filha Monica Millet, 36, que não quer assumir o fardo.
A própria mãe Cleusa admite que não queria subir ao trono. "Apesar de ter nascido e vivido até a adolescência dentro de uma casa de candomblé, de ser filha de mãe-de-santo, nunca pensei em ocupar cargo algum", disse em entrevista à Revista da Folha, no Gantois.
Ela afirma que não queria fugir à responsabilidade, mas descreve o seu sofrimento: "Ao assumir o lugar de mamãe, a sensação que tive era de que aquele sapato cômodo, que usava todos os dias, tinha desaparecido. E até me acostumar a andar descalça ou conseguir um sapato que ficasse bem nos pés sofri muito".
No Gantois, normalmente quem assume o lugar da mãe é a filha mais velha, mas Cleusa tinha construído toda uma vida longe do candomblé. Casou-se aos X anos com um oficial da Marinha de Guerra e viajou pelo mundo todo.
Na volta, decidiu morar no Rio e desengavetou o diploma de medicina que tinha obtido na Universidade Federal da Bahia. Arrumou, pela primeira vez, um emprego de obstetra. Teve três filhos e "não pensava em mudar de vida".
Quando o marido se aposentou, o casal voltou à Bahia e começou a reaproximação com o candomblé. "Até um tempo atrás, as pessoas que tinham uma certa cultura adoravam o candomblé, mas não queriam assumir a responsabilidade de uma casa, de ser pai ou mãe-de-santo. Eu também pensava assim. Achava que mamãe viveria eternamente e que eu continuaria só colaborando com ela", diz.
A transição se deu de maneira sutil, sem que Cleusa percebesse. "Primeiro parei de trabalhar porque tive problemas para me desligar dos empregos do Rio. Aos poucos, comecei a fazer partos de graça para o pessoal do bairro e nunca mais voltei aos hospitais", lembra.
O trabalho comunitário levou Cleusa ao terreiro. "Sempre acompanhava mamãe e logo fiquei envolvida. Nunca pensei em assumir seu lugar porque ninguém se prepara para perder a mãe."
Cleusa conta que mãe Menininha nunca falou abertamente sobre a sucessão. "Hoje me chamam a atenção do quanto mamãe citou meu nome em entrevistas. Na época, achava normal. Não sentia que ela preparava o terreno para que eu assumisse a casa."
Quando pessoas mais antigas no Gantois tocavam no assunto, Cleusa desconversava. "Uma vez fui levar uma encomenda a outra mãe-de-santo, famosa na Bahia. Quando cheguei, ela disse que tinha uma coisa guardada, que seria só para mim. Fugi assustada porque não queria ouvir sinais", conta.
A história agora se repete -com tons de modernidade. Sua filha mais velha, Mônica, se recusa a assumir o "trono". Carioca, Mônica não foi criada em uma casa de candomblé como a mãe. Seu maior interesse é música: é percussionista e até 95 tocava com Marisa Monte.
"Acho que a sucessora será uma das minhas primas, filhas de mãe Carmem. Elas têm mais jeito para assumir as funções do candomblé do que eu", diz. Mãe Carmem é a irmã caçula de mãe Cleusa, seu braço-direito e responsável pelas tarefas administrativas do terreiro.
Mônica diz que o seu trabalho com os meninos do Gantois não tem ligação com o candomblé. "Trabalho com música e escolhi as crianças daqui, mas poderiam ser de qualquer outro lugar."
Mãe Cleusa diz que joga nas mãos de Deus a escolha da nova guia. "Será quem Deus e os orixás decidirem. Mas a sucessão tem de ser hereditária. Quando não estiver mais aqui, serei substituída por alguém da família." Sobre a rebeldia de Mônica, mostra-se compreensiva.
"Quando tinha a idade dela, jamais passava pela minha cabeça assumir a casa. Mas mamãe já preparava o caminho sem que eu sentisse."
Cleusa parece tentar repetir a estratégia da mãe. Atraiu a filha ao Gantois também com um trabalho comunitário. Hoje, Mônica é maestra de uma banda formada por adolescentes pobres do Gantois.
Se a tática não der certo, Cleusa tem outra pretendente. Embora tenha outra filha (Ana Carolina, 13, que é adotada), quem empolga mesmo mãe Cleusa é a neta Andréa, de apenas sete anos. "A Andréa tem tanto jeito para cuidar do axé que até me surpreende. Ela só tem sete anos, mas é muito dedicada e séria. Você não vê um sorriso no rosto dela", diz.
Ela assume que também não fala abertamente do assunto com a filha ou a neta. "Acho isso tudo da Andréa, mas nunca contei a ela. Também não falo com Mônica ou Carolina. Será quem Deus quiser."
Pode parecer cedo alguém de 65 anos pensar em sucessão, mas esse é um processo muito demorado -e delicado- no candomblé. Envolve disputa de poder e a sucessora tem de ser preparada longamente para tornar-se sacerdortisa.
A dona do terreiro
Mãe-de-santo é o cargo mais alto no candomblé. Seu poder divino emana de um orixá (santo) -Cleusa "recebe" Nãnã. Ela trabalha como guia espiritual: dá conselhos, faz previsões e coordena os rituais.
Durante a entrevista, mãe Cleusa recebeu dezenas de telefonemas. O mais demorado foi de um pai preocupado com o filho que sumira havia dois dias. Ele temia que o garoto tivesse morto. Depois de ouvir tudo, ela disse apenas: "Não se preocupe, ele está bem".
Cleusa passa quase todo o dia sentada na cama de seu quarto. É lá que recebe visitas, dá consultas (gratuitas) e faz colares com miçangas das cores dos orixás para "combater a tensão".
Ao contrário da rainha Elizabeth, a mãe-de-santo tem na prática muito poder em seu terreiro. Pode expulsar qualquer um, toma decisões financeiras e pode ter bastante influência política.
Mãe Cleusa diz que não apóia nenhum candidato, mas admite que dá conselhos aos frequentadores de sua casa. "O sentimento de gratidão é muito importante. Procuro lembrar meus seguidores das pessoas que nos ajudaram. Eu digo: 'Lembra de quem nos deu um copo com água no dia da ceia? Então, na hora de votar, pense no copo com água. Mas não obrigo, nem induzo ninguém, só advirto'." Para bom entendedor, meio copo d'água basta.

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